domingo, 7 de setembro de 2025

Gastei os olhos a escrever...

Gastei os olhos a escrever. Gastei, gastei... a escrever, muito, linhas cheias de letras, para cá e para lá, numa azáfama incontida para reter e pensar o mundo e a vida. Gastei-os, pois, à força de querer conhecer e compreender as coisas que via e as que aconteciam, a mim e aos outros. Gastei-os. Agora protestam e ficam embaciados, turvos, nem os óculos me salvam. 

Gastei os olhos a escrever e talvez um pouco a alma. Parece que secou, fogem-me as ideias e as palavras, afastam-se de mim, disfarçadas e esquivas, como se já não houvesse beleza para enaltecer, nem mágoa para partilhar. Como se tudo estivesse neutro, inócuo e pouco visível. Sem interesse ou força que me impulsione. 

E no entanto, o mundo está cada vez mais incompreensível. Feio e obcecado com ódios, palavras que se lançam, rápidas e mordazes um pouco por toda a parte, nas redes sociais, na loja do bairro, ao nosso lado, mesmo perto da porta que abrimos, pela manhã, à espera do sol, do riso amigo e de gestos de humanidade solidária. 

E, no entanto, vemos as notícias e a guerra e as crianças a morrer. Tudo motivos para se escrever. Escrever com maiúsculas e gritar com sons muito altos, nunca escutados. Porque o tempo, este tempo é de protestos e luta. E escrever é preciso. Escrever para denunciar e contrariar a normalidade que parece ter invadido o nosso viver. Já nada nos surpreende, já nada nos inquieta e tira o sono. Parece.

Bem sei que nem tudo é fealdade e ódio. Generalizar é perigoso e traiçoeiro, o mundo é feito de muitas cores, convicções e utopias. Sei que há vozes que resistem, palavras que anunciam outros lugares e gentes, aquelas que acreditam na riqueza da liberdade, da alegria, da solidariedade, da igualdade, dos direitos, sem donos nem linhagens. Mas é difícil, por agora e por enquanto. E por enquanto, é que é.

Gastei os olhos a escrever e sobretudo a alma. Inquieta-me o nosso tempo e a possibilidade de não conseguir ver, ao perto e ao longe. Não literalmente, mas ficar cega, adormecida, no coração, na sensibilidade, na coragem e na lucidez. 

Tenho de continuar a treinar o exercício da escrita, embora não me sinta, hoje, competente e predisposta.  

 

sábado, 22 de fevereiro de 2025

Mais um sábado pedagógico: há dias assim...


Há dias em que tudo se compõe dentro de nós, numa espécie de esteira quase perfeita, dando sentido e chão às ideias, palavras e sentimentos que andámos a nutrir anos sem conta. Escancaram-se as portas e ainda que nem tudo seja novo, o que surge aos nossos olhos, é claro, bonito e justo. Tem sentido de ser, tem ética e estética.

Hoje foi um desses dias. Sentada numa sala para ouvir e pensar a pedagogia, fiquei de frente com a beleza, a alegria, o espanto. Vi árvores da liberdade esculpidas pelas mãos de crianças, registos de luz e sombra, textos e ideias, arte(s) e projetos, que se alongam para lá das paredes, construindo lugar na rua, convidando os de fora a ficarem por dentro. A olhar e a compreender a riqueza do pensamento e da ação de crianças e adultos. Sobretudo a ideia que a inclusão é uma condição possivel e necessária para a nossa vida em comum. Que a democracia e solidariedade tem rosto(s), nome(s), estratégias para a sua construção. 

 Pola 5 anos

Mas vi e ouvi mais. Pequenas (grandes) histórias de profissionais que agarrando o essencial, procuram inscrever o que fazem num ambiente de escuta, respeito, atenção. Histórias quase banais, pequenos apontamentos, intensos e desafiadores, exigindo a humildade de saber que, face a algumas vidas, é preciso agir com cautela,  sensibilidade e sobretudo confiança. As crianças, dão-nos, tantas vezes, a solução certa e apaziguadora para os nossos receios. Ouçamo-las com seriedade.  

Foi tudo assim tão novo? Não, foi tudo assim tão bonito e cuidado, numa interação amorosa de pensar minuciosamente a ação, levá-la a bom porto, em cooperação, resgatando a reconstrução da cultura como legado para o currículo e a vida na escola. 

E fiquei a pensar que é urgente que possamos celebrar as nossas práticas, divulgar o que fazemos a outros, negar o estatuto de minoridade, conceder às crianças o lugar a que têm direito, concedendo-nos também a nós um lugar ao sol, ou como hoje se disse, procurar mais a luz que a sombra. 

E fiquei a pensar em todos os profissionais que trabalham com crianças, e como isso é dificil, desafiador, inquieto, mas também deslumbrante e inovador. E lembrei-me das creches, dos meninos e meninas tão pequenos, do cansaço, dos cuidados, do amor, da invisibilidade da sua ação, da perceção da sua função como apenas cuidadores, sem saber que cuidar exige, entre outras coisas, atenção, envolvimento, responsividade, competência, preocupação, conhecimento, ética. Tanto, não é? Quem é capaz? 

Lembrei-me de tudo nesta manhã de mais um sábado pedagógico.  Obrigada às colegas pela sabedoria, pelo encanto, pela atenção e pelo cuidado com que fazem acontecer os dias nas suas salas, de braço dado com as crianças, as famílias e a comunidade. Respeitando-as, escutando-as e incluindo-as. 

Quando é assim tudo se compõe dentro de nós.