De novo te recordo e te escrevo, neste dia em que farias anos, se estivesses aqui. De novo te convoco, discreta e viva, para me aquietares de uma leve tristeza e nostalgia, difusa, mas ainda assim presente em alguns dias. Hoje, sobretudo.
O dia está chuvoso, com frio e vento, cinzento e molhado. Dia de ficarmos pela sala, entre o sofá e a cozinha, a preparar o almoço e certamente coladas à televisão, a ver a assembleia da república e as sucessivas votações. Teríamos conversa animada pela certa, com as tuas perguntas, opiniões e espantos. Eras assim, interessada pela política e pela vida do país, e eu apreciava essa qualidade, tanto mais que a vida não te deu, à partida, condição suficiente para construíres um olhar critico sobre o mundo e as suas múltiplas realidades. Mas tu soubeste construí-lo, em parte pela tua sensibilidade e inteligência, em parte pela socialização que foste fazendo com os filhos e por uma curiosidade quase inata, quase infantil, que nunca perdeste. Recusavas as novelas, os filmes lamechas, as histórias de cordel...mudavas de canal com impaciência e procuravas a informação. E eu gostava desta nossa cumplicidade em torno do que acontecia e nos estarrecia.
desenho da M.R.
Tenho saudade da tua companhia, do teu amor discreto, sempre presente e incondicional. Tenho saudades de ser filha, a tua filha, eu que me tornei mãe e recentemente avó. Tenho saudades de te falar da Júlia, a filha do teu neto Miguel, que cresce todos os dias inundada por amor, cuidado, alegria e paixão. Fazes cá falta.
Queria contar-te como é ser o que também foste e em desabafos cúmplices, partilharmos as aventuras e desventuras da nossa condição de mulheres maduras (chamam-nos assim, agora, vê só...), que desfiam o rosário dos dias, entre convicções e atropelos de novas ideologias e modos de viver. E com a Júlia e a propósito dela, havíamos de ir buscar as nossas infâncias, quando te fui ver ao hospital com 5 anos, perdida de medo de te perder; quando me cortaste o cabelo, com "marrafa" e eu odiei, quando fritavas o peixe e eu e o meu irmão subíamos para o banco para te dar beijos e tu a fugir, com o riso contente. E falaríamos também da minha avó, da sua força de mulher independente, da sua garra e da sua companhia e proteção. E da eira e do quintal, e do milho, e das ameixas boas, e do poço, e das regas, e das uvas e do lagar. E dos braços da ria. E da liberdade de correr pelos campos.
E eu ficaria bem feliz e tu também e ninguém nos tiraria a lonjura de sermos mãe e filha com filhos e netos e neta. Não seria mesmo bom?
Tenho saudades, mãe. Principalmente de ser filha. Sabes, mãe, cansa ser mãe e avó e não ter um colo à mão de semear, nos dias em que a chuva parece arrastar uma tristeza delicada para o coração.