quarta-feira, 27 de março de 2024

Saudade (s), de novo.

De novo te recordo e te escrevo, neste dia em que farias anos, se estivesses aqui. De novo te convoco, discreta e viva, para me aquietares de uma leve tristeza e nostalgia, difusa, mas ainda assim presente em alguns dias. Hoje, sobretudo.  

O dia está chuvoso, com frio e vento, cinzento e molhado. Dia de ficarmos pela sala, entre o sofá e a cozinha, a preparar o almoço e certamente coladas à televisão, a ver a assembleia da república e as sucessivas votações. Teríamos conversa animada pela certa, com as tuas perguntas, opiniões e espantos. Eras assim, interessada pela política e pela vida do país, e eu apreciava essa qualidade, tanto mais que a vida não te deu, à partida, condição suficiente para construíres um olhar critico sobre o mundo e as suas múltiplas realidades. Mas tu soubeste construí-lo, em parte pela tua sensibilidade e inteligência, em parte pela socialização que foste fazendo com os filhos e por uma curiosidade quase inata, quase infantil, que nunca perdeste. Recusavas as novelas, os filmes lamechas, as histórias de cordel...mudavas de canal com impaciência e procuravas a informação.  E eu gostava desta nossa cumplicidade em torno do que acontecia e nos estarrecia. 

desenho da M.R.

Tenho saudade da tua companhia, do teu amor discreto, sempre presente e incondicional. Tenho saudades de ser filha, a tua filha, eu que me tornei mãe e recentemente avó. Tenho saudades de te falar da Júlia, a filha do teu neto Miguel, que cresce todos os dias inundada por amor, cuidado, alegria e paixão. Fazes cá falta. 

Queria contar-te como é ser o que também foste e em desabafos cúmplices, partilharmos as aventuras e desventuras da nossa condição de mulheres maduras (chamam-nos assim, agora, vê só...), que desfiam o rosário dos dias, entre convicções e atropelos de novas ideologias e  modos de viver.  E com a Júlia e a propósito dela, havíamos de ir        buscar as nossas infâncias, quando te fui ver ao hospital com 5 anos, perdida de medo de te perder; quando me cortaste o cabelo, com "marrafa" e eu odiei, quando fritavas o peixe e eu e o meu irmão subíamos para o banco para te dar beijos e tu a fugir, com o riso contente.  E falaríamos também da minha avó, da sua força de mulher independente, da sua garra e da sua companhia e proteção. E da eira e do quintal, e do milho, e das ameixas boas, e do poço, e das regas, e das uvas e do lagar. E dos braços da ria. E da liberdade de correr pelos campos. 

E eu ficaria bem feliz e tu também e ninguém nos tiraria a lonjura de sermos mãe e filha com filhos e netos e neta. Não seria mesmo bom? 

Tenho saudades, mãe. Principalmente de ser filha. Sabes, mãe, cansa ser mãe e avó e não ter um colo à mão de semear, nos dias em que a chuva parece arrastar uma tristeza delicada para o coração. 


quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Para a Júlia

A minha neta Júlia já nasceu. Tem 22 dias. Sempre que nasce um bebé das minhas pessoas, escrevo um texto, porque me inunda uma espécie de renovação de esperança e fé, misturada com alegria e espanto. Olho para esses bebés e as palavras soltam-se embriagadas, poderosas, a anunciar promessas e a desejar sorte e amor. Com a Júlia não foi assim, de imediato. 


Dei-lhe colo, na maternidade, com jeito e parcimónia, entre o silêncio, o espanto e a alegria. O meu corpo aqueceu, o coração ficou maior e as palavras, essas, esgotaram-se. Nem de perto, nem de longe, fui capaz, nos primeiros dias, de lhes dar forma. Obedeci. 

Depois esperei-a em casa e comecei de mansinho a apreciar o seu envolvimento com a vida, os pais em primeiro lugar, com os beijos, os abraços, os colos ternos, o cuidado, o amor desmedido e provado, durante nove meses e sonhos antes acalentados. Depois a luz, os sons, as falas, o calor, o riso, o frio, o aconchego, numa dança do quotidiano, que ela vai sentindo e integrando no seu corpo, que é desde já, emoção, interação e apego. 

Olha-nos com uma atenção focada, escuta e responde, em gestos de bem estar ou desconforto, confirmando a sua competência para ser com os outros, aqueles pelos quais vai experimentar bem estar, segurança e confiança para olhar e conviver com o mundo. E isso será o seu passaporte para a vida, o seu legado primeiro e fundador. 
desenho da Maria Rita 

 Canto-lhe canções quando a tenho ao colo e espanto-me com o seu corpo e a sua pessoa. Apesar de muito dependente, ela aí está, impondo os seus ritmos na nossa vida, entre fraldas, leite doce da mãe, banhos quentes, carícias e conversas de um pai sempre presente. 

 E eu fico alegre e expectante, porque a vida se faz pela mão e pelo corpo das nossas figuras de referência, a mãe e o pai, e pelo envolvimento de uma família e amigos que saibam acolher, mimar, entender, confortar, orientar e propor. E refutar. Porque a educação se faz por propósitos, sonhos e convicções para suster e apoiar um projeto de vida. De que a Júlia será a autora, a meias com aqueles que lhes deram o chão e o céu, numa comunidade de afetos. 

Olho para ela e penso que tem tudo para ser feliz. Que assim seja, com saúde, amor, alegria e liberdade. E fraternidade e lucidez. Para isso precisamos de continuar todos por aqui, principalmente os pais, guardiões do amor, que por agora, se faz pelo corpo e com o corpo, lugar de começo da vida. 

Longa vida, Júlia, justa, atenta, solidária, fraterna. E muita sorte, minha querida. Porque também é preciso e necessário. Tu verás. 

E conta sempre comigo para tudo, principalmente contar histórias, ir ao parque, correr atras das borboletas, cantar canções e inventar brincadeiras e alegrias boas. E conversar muito. Boa??? 

 Beijos da avó Nela

segunda-feira, 27 de março de 2023

Saudade e cheiro(s)

Farias hoje anos, se cá estivesses. Muitos, mas nunca os suficientes ou de sobra para a nossa saudade. Gostava tanto de voltar a ver o teu sorriso, meio tímido e disfarçado, mas cheio de alegria, sempre que olhavas para nós.  Gostava que te sentasses de novo na cozinha, a beber o café com leite e a sacudir as migalhas do pão, para que tudo ficasse limpo e arrumado. E a levantar as cortinas da janela, a olhar para a rua, na procura inconfessada  de um braço de ria ou de um milheiral sacudido pelo vento. Porque gostavas de estar na nossa casa, mas tinhas saudades da tua.

E são saudades que hoje sinto, espalhadas pelo peito, meio tristes, meio conformadas. Saudades e cheiros. Da canela que punhas na aletria; dos grelos a cozerem na panela para acompanharem o bacalhau; da tua bata que vestias pela manha, um hábito que te ficou, de mulher de trabalho. Sinto saudades do cheiro do teu quarto, da tua agenda azul, da tua roupa e dos santinhos que guardavas junto a fotografias em envelopes. E das tuas mãos no terço. Sinto saudades da tua intimidade. 

E sinto saudades de me ouvires. Eu falava-te da minha vida, do trabalho, de projetos, dos nossos rapazes, de notícias (políticas, que gostavas) e do estado do mundo, e tu dialogavas, quase sempre com perguntas, indicadores inteligentes das tuas ideias e expectativas. E refutavas claro, sobretudo a minha ocupação como educadora, que dizias ser excessiva em horas diárias e preocupação a mais. Mas sei que te orgulhavas de mim. Tenho saudades desse orgulho e aprovação.

Mãe, agora já estou reformada e tenho muita pena que não me possas ver assim. Com tempo para arrumar as gavetas, olhar o céu azul e ler. Sei que irias de bom agrado para o sótão ajudar a arrumar os livros e pedaços da nossa vida que estão por lá, entre estantes, gavetas, fotos antigas e atuais. E havíamos de rir do ar dos rapazes em bebés, de ti nova e de mim, ainda menina. E conversaríamos sobre o corte de cabelo de então, com cheiro e tudo. E seria bom. E seria intimo. 

E cansadas de tanta arrumação, haveríamos de ir tomar café e ver os patos ao parque da paz. 

Tenho muitas saudades disso, mãe.


quarta-feira, 1 de março de 2023

(Re)tomar o caminho

Ontem à noite, foi uma noite boa. Ainda que de longe e em modo zoom, ouvi, pensei e aderi. Aderi por acreditar, por sentir, por saber que é mesmo assim que tem que ser. Nós, enquanto educadores e adultos responsáveis por grupos de crianças pequenas, sermos capazes de desenvolver "relacionamentos atenciosos, atitudes carinhosas, experiências positivas". Na conversa fluída e vagarosa a professora Teresa de Brito, desfiou ideias e histórias, perguntas e apelos, certezas e dúvidas, agitando as nossas convicções e práticas pedagógicas. Bebi sofregamente todas as ideias. Registo (apenas) algumas:

- Os adultos são capazes de pensar e refletir. Para isso é preciso parar, conseguir um "vagar interno", "procurar os sentidos para a nossa vida", observar as crianças, dar signficado aos seus comportamentos; 

- Na ação com as crianças, devo reconhecer e celebrar a singularidade e a individualidade. A importância de contemplar o ritmo de cada criança e de o respeitar. Para isso tenho de ter tempo e dar tempo. A nós e às crianças; 

- Falo bem a linguagem do desenvolvimento? O que é mesmo fundamental? O que para mim é inegociável?  Que autores e perspetivas me guiam e iluminam? Para que quero o conhecimento? Como o utilizo e amplio com as crianças?

- As crianças mais pequenas ensinam-nos a inclusão de uma forma extraordinária. Sejamos capazes de observar e dar signficado, sem pressa. Aprendamos com elas a empatia, o altruísmo; 

- Nós..."Somos nós e a nossa circunstância". É preciso compreender os ambientes que envolvem e condicionam as crianças. Antes de julgar as famílias, importa que saibamos olhar com sensibilidade, compreender a diversidade da(s) vida(s) e reconhecer que em muitos lugares (e lares) não há tempo livre, nem tempo para parar;  

- A avaliaçao faz parte da nossa vida. Os educadores fazem parte da avaliação, com a criança e a família. É um processo cooperado, que necessita de ser descrito e partilhado com uma linguagem sensível e positiva. O que cada um trás para a relação? O que é melhor para todos?  O que é preciso para viver hoje? 

A professora Ana Teresa falou de muitas outras coisas, de uma forma bonita, muito profunda e delicada. Da ética, da responsabilidade, do brincar (um direito, o 31º da CDC), da participação da criança, como garante da sua pertença ao mundo e condição de ser pessoa. E deu-nos sempre o enquadramento e a sustentação teórica para que possamos responder postitivamente à pergunta: "Falo bem a linguagem do desenvolvimento?"  

E eu que andava (e ando) meia cismada, a sentir-me seca de palavras e em silêncio, encantei-me e confirmei o desejo de continuar a aprender e a escrever. Um alerta para renovar este novo tempo que agora habito, em que me falta a "matéria prima", as crianças, com as suas falas, alegrias, desenhos, brincadeiras, choros, movimento, barulho. Para poder com elas e sobre elas pensar, apreciar e discorrer sobre a profissão. Um "vício" e uma paixão, alimentada e mantida durante muitos anos. Podemos continuar? 

Obrigada, professora Teresa.  



quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Com bata?


 

 

 

 

 


 

 

 

 

 

Estavam todos sentados à espera que a festa começasse,  e eu aproximei-me, contente de os ver, com as fitas na cabeça, direitinhos e curiosos, entre a música de natal, o barulho das vozes e a azáfama dos adultos.  Alguns abraços vieram rápidos, outros ficaram recolhidos, que a compreensão da minha ausência ainda não era nem clara nem certa.

Aproximei-me dela, e fiquei sentada ao seu lado, perguntando se estava tudo bem. Respondeu que sim e remeteu-se ao silêncio, num comportamento pouco habitual. Depois começou a brincar com a amiga do lado rindo.                                                           

- A tua mãe vem amanha ao lanche?, perguntei-lhe

- Vem!? disse ela, pensando que eu estava a fazer uma afirmação.

- Não estou a dizer que vem, estou a perguntar se tu sabes se a tua mãe vem. Eu venho.

Olhou para mim muito séria e disse repentinamente

 - Com bata?

Sorri, dei-lhe um abraço e disse: 

- Não, sem bata, eu agora já não vou vestir bata, na sala, porque já não vou trabalhar mais com os meninos e as meninas. Já tínhamos conversado sobre isso, lembras-te?  Mas venho visitar-vos, de vez em quando vez em quanto.

E fiquei a pensar na pergunta e na bata, surpreendida pela forma como foi dita, com rapidez,  como se já fosse pensada há algum tempo. Pensei na bata e no seu valor e função, para nós e para as crianças. Nas histórias que as batas contam e fazem no quotidiano da sala, naquilo que podem transmitir, propor, construir. Uma bata? sim, uma bata, não pelo seu corte, estética, cor, mas porque assumem o cobrem o corpo de uma pessoa que se torna referência, que ao vesti-la, pela manhã, está pronta para ir brincar, planear, ouvir, desafiar, dar colo...também zangar-se, às vezes...mas sobretudo, fazer acontecer o dia com as crianças e a equipa. A bata como requisito de permanecer, de ficar, de continuar.

Se se pode ser educadora sem bata? julgo que sim. No caso que agora conto, não. Porque vestir a bata, pela manhã era uma rotina boa para mim, uma alegria e um conforto. Um ritual, a anteceder a chegada das crianças e o início do dia. Um início bom, a promessa de estarmos juntos e sermos um grupo e uma comunidade a aprender.

Pelos vistos e ainda que não exatamente nestes termos, para a F. também. "Tu vens, mas é com bata? 

                                                                                                                                      foto j.i Trafaria