quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Fui ao mar e vim do mar

Fui ao mar e vim do mar sem lhe contar as virtudes. Eu, que perdi a conta às vezes que o decantei, em dias de ondas mansas e areia macia. Mas o mar, neste agosto, pediu-me sossego e contenção, recato. Fiquei muda e espantada, de frente para a sua lonjura, enrolada em pensamentos dispersos, sem ousar quebrar o silêncio.

Fui ao mar e vim do mar, sem lhe sentir verdadeiramente os atributos. Presa ao ano que terminou, com ecos de cansaço e vestígios mal disfarçados, foi cedo para sonhar outros mundos, esses que sempre me assaltam quando, junto ao mar, retomo o que sou, deitando fora todos os desperdícios de mim. 

Fui ao mar e vim do mar, sem lhe trazer os vestígios. Um bocado de areia no fundo do saco, conchas pequenas para adornar a casa, a toalha com cheiro a maresia, a pele queimada, raios de sol na algibeira. Nada.

Fui ao mar e vim do mar sem lhe reter a frescura. E soube-me a pouco, dado o muito que estava empedernido dos meses vividos a custo e a medo. E demoram a passar. A ausência dos abraços, as ruas desertas, o confinamento imposto, os amigos à distância, as aulas por computador, as casas a serem escola e as escolas sem pessoas. Foi muito e foi duro. 

Fui ao mar e vim do mar e tenho que lá voltar. Talvez agora, com mais distância, já lhe possa sentir a beleza e retirar-lhe os dividendos. Vai ter de ser. 

 

Inscrição 

Quando eu morrer voltarei para buscar

Os instantes que não vivi junto do mar

Sophia Breyner


sábado, 25 de julho de 2020

Desejo(s)

Hoje acordei com saudade do mar. Da água a perder de vista, do som das ondas a bater na areia, do vento forte. Acordei com saudades do mar, mas este de aqui nem de agora, mas de outro, bravo e valente, agreste e ainda assim, tão generoso em peixe concedido para canastras de verga. O pregão alto e as mãos com sal, é a sardinha do nosso mar.


Acordei com a infância a bailar-me no credo, o cheiro da maresia preso nas pedras, as camisas axadrezadas dos pescadores, mãos calejadas das redes para ganhar o pão nosso de cada dia, em dias nem sempre fáceis para este propósito. E as mulheres de longe a sondar o jeito do mar. 

Acordei com a falta de algazarra junto ao mar, a lengalenga de mães a chamar os cachopos, pão com queijo e uvas pretas, a ternura escondida e meia disfarçada, mas a escorregar pelos olhos e nas palavras, às vezes apressadas e rudes. Mas só por fora, por dentro um amor intenso e protetor à sua prole.

Hoje acordei menina de bibe lavado e marrafa composta, deserta de dia de festa, ir para o bote atravessar a ria, sentir o som da água a deslizar, o moliço espalhado, o junco nas margens e as casas antigas, ao longe, adornadas por risos inteiros e conversas trocadas. 

Hoje acordei saudosa da infância, da ida ao mar ao domingo, da lentidão do tempo em tardes sem fim, do cantar das cigarras e do milho seco na eira, das desfolhadas com os vizinhos. E do jarro da água a passar de mão em mão, dos olhares atentos das avós, eternamente dispostas a ouvir e a cuidar.
Hoje acordei mais certa do lugar da comunidade em nós e da ausência de outros nos nossos dias e que marcam, na infância, a certeza do chão seguro, a reserva dos afetos, a resiliência para os sonhos e para a criação. Este é um caldo bom e de sustento para o que somos. 

Por isso, hoje acordei com a saudade de tudo voltar a ser como era, não para recuar muitos anos, mas para desconfinar e voltar a ser gente, entre outros. Porque os outros e a comunidade nos devolvem aquilo que somos, gente de alma e coração, entre iguais e diferentes. 

Assim nos queremos. Assim possamos.

sexta-feira, 10 de julho de 2020

Vida paralela

Não sabia que outra sorte havia de dar aos dias. Compunha-se diariamente para os cumprir ordeiramente e, no entanto, uma réstia de inquietação, ainda que mansa, destronava-lhe todas as intenções. Sorria com intimidade para os sonhos que a habitavam e alegrava-se com a sua persistência, ainda que ignorasse de onde provinham e porque vingavam. Não encontrava motivo para tanta permanência, e assim, quase com medo, discreta se queria e se perfilava, entre a sombra e a luz opaca. Evitava ser vista e percecionada, temendo perder-se entre os demais.
 
Desenho da M.(JI Trafaria)
Mulher de poucas palavras, guardava as mais belas e destemidas, no centro da sua liberdade, certa de ser esse o lugar mais seguro. O tempo tinha-lhe ensinado a ser vigilante e cautelosa, secreta, para deambular, a seu belo prazer em margens de rios selvagens, desses que correm frescos e promissores para planícies vastas. Nesses dias, inundava-se com coragem de pensamentos férteis, conjugados nas palavras que soletrava sem rodeios. E elas vinham e compunham a realidade, amansavam a dor, libertavam o canto, guarneciam o fel pelo mel e adoçavam as memórias e as utopias. Assim se sentia arco, flecha e consumação.

E estava só, inútil e parada, entre sonhos e palavras? não, cumpria com normalidade a função dos dias, sem que ninguém suspeitasse do fogo e da fúria para fazer outro tempo e outro lugar. Apenas alguns sabiam do seu desnorte, da sua resistência para entrar no carreiro, da sua paixão pelas margens e pela verdade. Esses poucos, que com ela partilharam o poder das palavras e dos sonhos, estimavam-na e compreendiam. E às vezes, em alguns dias de anunciação, compunham, em companhia, as mais belas lições de amor, esperança e rebeldia. E isso bastava.

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Memória(s). Para ter futuro.

Mantenho a serenidade e sossego as emoções, palmilho devagar pensamentos dispersos, acaricio sons e palavras, guardo imagens trémulas. Instáveis. Algumas muito doces, algumas tristes. Permaneço a olhar o céu azul e as árvores do jardim, o silêncio abraça o vento leve.

Lembro-me de ti, mãe, e tenho saudades imensas das tuas mãos e do teu sorriso. E de te ter por perto. Devagarinho, encosto-me ao que tenho de ti e juro que descanso, apesar da tua morada já não ser esta. Surpreendo-me com o amor pleno das mães para serem vida, para além da morte. 

Desenho da M. JI Trafaria
Lembro-me da casa da minha avó, com pasto e árvores de fruta, uvas e ameixas grandes. De chapinhar os pés na água e correr pelos campos. E do terço à noite, ladainha certa para fazer a ceia. E agradeço o amor dos que me cuidaram, garantindo o pão e a liberdade.

Lembro-me dos meus filhos, dos seus dedos pequeninos, da pele macia e dos beijos longos de amor. Dos risos, das lágrimas e do colo quente. E confirmo a possibilidade de dar a vida a outros, num gesto de desafio e missão urgente. Para se fazer de novo e bem, o que connosco fizeram.

Lembro-me dos meus meninos e meninas, lá no recreio, de brincar ao lobo mau, dos abraços apertados e das conversas boas.  Da cumplicidade, das pinturas, desenhos e gargalhadas em dias de liberdade. Dos choros e das zangas, a confirmar que a escola se faz com tudo aquilo que a vida tem, porque é vida e é real, investida e amada.

Lembro-me de sonhos secretos. Da cabeça na lua à procura do mundo, das nesgas do tempo com outro compasso. Da beleza dos livros, de passos de dança no terreiro, do manto de estrelas em noites frias. E da permanente procura da poesia, o antídoto certo para dias sem história. 

Lembro-me de tudo isto e paro de espanto, por estar assim como estou. Com um corpo carregado de anos e um coração carregado de outros, feitos vida em mim. Tenho-os a todos num lugar seguro, recurso poderoso para contrariar desvarios cansados. Porque não estamos imunes a tentações imperfeitas, essas que nos fazem perder o norte e debandar.

Quero-me ainda e sempre em vigília constante, apesar dos (tantos) anos e do caminho andado. Aqui estou e assim sou, agradecida a todas as minhas pessoas.  Obrigada.


sábado, 11 de abril de 2020

Pão e Pensamento

O meu filho mais novo, num dos seus escritos (trocamos escritos, às vezes) disse-me que eu e o pai lhe tínhamos dado "pão e pensamento". Surpreendi-me com a expressão e retive-a em mim. É forte, concisa e essencial, se pensarmos nas coisas da educação e naquilo que podemos legar aos nossos. 

Pão. É o sustento para a boca, o leite morno em bebé, os lanches da escola, os dedos lambuzados do mel, a sopa na mesa, a carne e o peixe, os legumes. E as birras, porque não se gosta, e a cara feia porque tem de ser. E as vacinas, a febre e a constipação. E os joelhos esfolados. O pão para a boca, que o corpo cresce e precisa de cuidados, misturados com beijos e abraços, que também alimentam. O pão, mais ou menos suado e ganho, na jornada diária do trabalho. O pão, que uns podem dar e outros não, ainda que o queiram fazer.

Pensamento. Palavras e ideias que se dizem, entre corridas para a escola, treinos e preguiças lentas pela manhã. Exemplos de vida, não debitados, mas vividos, expostos com transparência nos detalhes dos dias. Conversas à mesa, trazer para dentro as injustiças da vida lá de fora e tomar posição. De frente e sem medo.  Encontros de amigos, férias em conjunto, numa cultura de grandes e pequenos, que se pensam e se dizem, trocando ideias e razões. Um pensamento com utopias e princípios, com clareza e sem dúvidas disfarçadas. Um pensamento sempre certo? não, sempre verdadeiro e se possível, critico e justo.

E no meio do pão e do pensamento, as crianças a beberem e a mastigarem o que nós lhes damos. Tomemos cuidado com o que pomos na mesa e sobretudo o que oferecemos para o pensamento. Desde logo, desde muito cedo. Para sermos sempre excecionais? Não. Para não esquecer que somos o adubo diário para o seu corpo, emoção e pensamento. Para sermos vigilantes e atentos. E humildes, para aprender com eles o exercício da verdade. Todos os dias. 

quinta-feira, 19 de março de 2020

Por estes dias...

E de repente, estamos fechados em casa, a fazer dos dias outros dias, inventando a normalidade contra a surpresa e o medo. O medo é um sentimento estranho, inimigo da serenidade e muito poderoso. O medo arrebata-nos os sentidos e a razão, ainda que, em doses certas, nos proteja de perigos e nos obrigue a ser cautelosos. E temos de ser.

Porque a vida é um bem imponderável, ainda que o esqueçamos frequentemente. Vivemos com uma ilusão de domínio e controlo, como se, apenas de nós dependesse o correr do tempo e a confirmação do futuro. E não é assim. Hoje, sabemos melhor, que não é assim. E dizem que vai ser duro. E vai. 

Não estar com os nossos, mais novos e mais velhos, sentir-lhes a falta do riso à volta da mesa e os abraços quentes em tardes de verão. Experimentar a saudade e senti-la na pele e no coração. Quebrar as rotinas, não comprar o jornal e não tomar café, trabalhar de casa. Vai-nos fazer falta a azáfama de estarmos em conjunto, em casa e no trabalho, uma alavanca enorme para fazer a vida acontecer.

Podemos ainda ficar doentes ou ver doentes muitos dos nossos, família e amigos. E desconhecidos, que hoje são uma parte de nós, espelho largo onde nos vemos refletidos. Não há, por agora, quem possa dizer-se imune a este mal. Estamos todos por igual no mundo.

E vai ser longo, todo este tempo. Que reservas nos vão ser exigidas? que esperança, solidariedade e coragem vão ser necessárias? que preces, pontos de luz, poesia e prosa para nos acalentarmos? que cuidados e desvelos para connosco e com os outros?  

Mantenhamos por agora a cabeça arrumada, os cuidados redobrados, a atenção infinita aos outros, a serenidade, a alegria, a criatividade. E a lucidez. Por nós e por todos. Vamos ficar bem!

 Claridade - Miguel Torga
 
Clareou.

Vieram pombas e sol,
E de mistura com o sonho
Posou tudo num telhado...
Eu destas grades a ver
Desconfiado

Depois
Uma rapariga loura
(era loura)
num mirante
estendeu roupa num cordel:
roupa branca, remendada
que se via
que era de gente lavada,
e só por isso aquecia...

E não foi preciso mais:
Logo a alma
Clareou por sua vez.
Logo o coração parado
Bateu a grande pancada
Da vida com sol e pombas
E roupa branca, lavada.

Lisboa, Cadeia do Aljube, 1 de Fevereiro de 1940

terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Quanto custa a vida?

Quanto custa a vida?  Hoje acordei com esta pergunta, em jeito de balanço. É fim de ano, somos dados a sínteses e promessas.

Quanto custa a vida? quanto de nós se esvai na liquidez dos dias e na luta de ser gente, entre iguais e diferentes? quanto pagamos pelo pão e pela comida na mesa? quanto pagamos pelo amor no coração e na alma ardente? quanto damos, recebemos e recusamos?

Quanto custa a vida? quanto pagam as crianças que vivem na pobreza e espreitam um futuro que foge desalmado? quanto pagam os sem casa, pela praça deserta e o cartão que não cobre o frio?  quanto pagam as mulheres maltratadas? e os outros, marginalizados?

Quanto pagamos pelos sonhos desfeitos, pela procura da verdade e a alegria da liberdade? quanto pagamos pelas nossas ideias? quanta força despendemos no içar das bandeiras que colocamos ao alto? 

Quantas lágrimas derramamos no correr do tempo, quantas rugas se formaram e se tornaram pele, quantos ensaios rasgámos e reescrevemos, quantas palavras se foram, sem verbo e conjugação?  

Quanto nos custa rebeldia e a alegria? e a solidariedade a bondade? o canto e o poema? quanto nos custa ser gente de corpo e alma inteira? 

Que 2020 possa ser um ano livre de pagamentos coercivos. A pagar, que seja em cestos de géneros livres de impostos: igualdade, direitos, justiça, pão, saúde, trabalho para todos. Sem distinções.
E amor e rebeldia. Muito. Sempre.