sexta-feira, 10 de julho de 2020

Vida paralela

Não sabia que outra sorte havia de dar aos dias. Compunha-se diariamente para os cumprir ordeiramente e, no entanto, uma réstia de inquietação, ainda que mansa, destronava-lhe todas as intenções. Sorria com intimidade para os sonhos que a habitavam e alegrava-se com a sua persistência, ainda que ignorasse de onde provinham e porque vingavam. Não encontrava motivo para tanta permanência, e assim, quase com medo, discreta se queria e se perfilava, entre a sombra e a luz opaca. Evitava ser vista e percecionada, temendo perder-se entre os demais.
 
Desenho da M.(JI Trafaria)
Mulher de poucas palavras, guardava as mais belas e destemidas, no centro da sua liberdade, certa de ser esse o lugar mais seguro. O tempo tinha-lhe ensinado a ser vigilante e cautelosa, secreta, para deambular, a seu belo prazer em margens de rios selvagens, desses que correm frescos e promissores para planícies vastas. Nesses dias, inundava-se com coragem de pensamentos férteis, conjugados nas palavras que soletrava sem rodeios. E elas vinham e compunham a realidade, amansavam a dor, libertavam o canto, guarneciam o fel pelo mel e adoçavam as memórias e as utopias. Assim se sentia arco, flecha e consumação.

E estava só, inútil e parada, entre sonhos e palavras? não, cumpria com normalidade a função dos dias, sem que ninguém suspeitasse do fogo e da fúria para fazer outro tempo e outro lugar. Apenas alguns sabiam do seu desnorte, da sua resistência para entrar no carreiro, da sua paixão pelas margens e pela verdade. Esses poucos, que com ela partilharam o poder das palavras e dos sonhos, estimavam-na e compreendiam. E às vezes, em alguns dias de anunciação, compunham, em companhia, as mais belas lições de amor, esperança e rebeldia. E isso bastava.

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