E de repente, estamos fechados em casa, a fazer dos dias outros dias, inventando a normalidade contra a surpresa e o medo. O medo é um sentimento estranho, inimigo da serenidade e muito poderoso. O medo arrebata-nos os sentidos e a razão, ainda que, em doses certas, nos proteja de perigos e nos obrigue a ser cautelosos. E temos de ser.
Porque a vida é um bem imponderável, ainda que o esqueçamos frequentemente. Vivemos com uma ilusão de domínio e controlo, como se, apenas de nós dependesse o correr do tempo e a confirmação do futuro. E não é assim. Hoje, sabemos melhor, que não é assim. E dizem que vai ser duro. E vai.
Não estar com os nossos, mais novos e mais velhos, sentir-lhes a falta do riso à volta da mesa e os abraços quentes em tardes de verão. Experimentar a saudade e senti-la na pele e no coração. Quebrar as rotinas, não comprar o jornal e não tomar café, trabalhar de casa. Vai-nos fazer falta a azáfama de estarmos em conjunto, em casa e no trabalho, uma alavanca enorme para fazer a vida acontecer.
Podemos ainda ficar doentes ou ver doentes muitos dos nossos, família e amigos. E desconhecidos, que hoje são uma parte de nós, espelho largo onde nos vemos refletidos. Não há, por agora, quem possa dizer-se imune a este mal. Estamos todos por igual no mundo.
E vai ser longo, todo este tempo. Que reservas nos vão ser exigidas? que esperança, solidariedade e coragem vão ser necessárias? que preces, pontos de luz, poesia e prosa para nos acalentarmos? que cuidados e desvelos para connosco e com os outros?
Mantenhamos por agora a cabeça arrumada, os cuidados redobrados, a atenção infinita aos outros, a serenidade, a alegria, a criatividade. E a lucidez. Por nós e por todos. Vamos ficar bem!
Claridade - Miguel Torga
Clareou.
Vieram pombas e sol,
E de mistura com o sonho
Posou tudo num telhado...
Eu destas grades a ver
Desconfiado
Depois
Uma rapariga loura
(era loura)
num mirante
estendeu roupa num cordel:
roupa branca, remendada
que se via
que era de gente lavada,
e só por isso aquecia...
E não foi preciso mais:
Logo a alma
Clareou por sua vez.
Logo o coração parado
Bateu a grande pancada
Da vida com sol e pombas
E roupa branca, lavada.
Vieram pombas e sol,
E de mistura com o sonho
Posou tudo num telhado...
Eu destas grades a ver
Desconfiado
Depois
Uma rapariga loura
(era loura)
num mirante
estendeu roupa num cordel:
roupa branca, remendada
que se via
que era de gente lavada,
e só por isso aquecia...
E não foi preciso mais:
Logo a alma
Clareou por sua vez.
Logo o coração parado
Bateu a grande pancada
Da vida com sol e pombas
E roupa branca, lavada.
Lisboa, Cadeia do Aljube, 1 de Fevereiro de 1940
É mesmo! Vou partilhar.
ResponderEliminar