sexta-feira, 18 de abril de 2014

Apontamentos de uma cidade bela

No meio de bicicletas e motas, ruas com arcos e cafés bonitos, sobriamente decorados, fachadas com portadas e varandas de ferro forjado, percorro a pé avenidas e ruelas, praças e jardins, observo tudo o que se apresenta aos meus olhos e ao meu coração. Há um contentamento em mim, porque é bonito o que vejo, uma cidade em tons de laranja, castanhos e cor de terra, uma cidade antiga, cheia de história, vestigios, força, presença e gente.

Passam por nós a a falar, estão no seu lugar, os estrangeiros somos nós a admirar a limpeza das ruas, as flores nas janelas, os candeeiros nos arcos, as montras com dezenas de formas de chocolates e ovos da páscoa, esteticamente arrumados e colocados uns ao lado de outros.

Também há flores, muitas e mulheres que as levam, algumas na bicicleta em que se deslocam, soberbamente bem vestidas, no seu meio de transporte habitual e que não é um BMW.

Bolonha Cafe ViagemTambém há uma livraria e muitos livros para a infância. Belissimos. Demorei-me nela mais do que uma hora, perdi-me a ver, a tocar, a surpreender-me, mais uma vez, com a criatividade de alguns homens e mulheres do nosso tempo, capazes de perfeitas obras primas, através de palavras e ilustrações soberbas. 

Apesar do dinheiro ser pouco, não resisti, comprei dois. Dificil, mesmo, foi escolher. Fiquei a pensar nos outros todos que deixei. Uma pena, porque os livros de qualidade para crianças são também para adultos. Queria-os todos - ou quase - para mim.

Também há o espaço - campus - da universidade, a primeira da Europa, a mais antiga, imponente mas quase (incompreensivelmente?) acolhedora, cuidada e quase familiar. Tudo com muito sentido estético e bonito, novamente, muito bonito. 

Sento-me num banco de uma praça, fecho os olhos e ouço o som da  fala das pessoas. Ainda que discretas, sinto a musicalidade da lingua e lembro-me de alguns filmes: O Carteiro da Pablo Neruda, A Melhor Juventude, O Cinema Paraíso, A Vida é Bela.

E agradeço ter podido vir até aqui , nestes dias de páscoa.

domingo, 13 de abril de 2014

Domingo(s) com arroz doce

Domingo. Lembro-me da minha avó, da ida à missa e da volta pela praça, da broa quente e do cheiro a café, das roupas domingueiras e dos bons dias alegres que dávamos entre todos, porque o domigo era um dia diferente, mais livre, sem o trabalho e as obrigações da semana. Às vezes a aletria e o arroz doce tinham lugar de destaque à mesa e isso era muito bom. Doce.

Quando cresci e me vi na minha vida, mulher jovem e independente, com a revolução de costumes na cabeça e no propósito, quase fiz tábua rasa deste ritual, para marcar a postura de que domingo é quando um homem quiser e assim, deitar fora sem deitar, o tradicionalismo e o mofo pressentido nestas práticas. 

Quando fui mãe, com os crescimento dos rapazes, os domingos viraram tempo de descanso, brincadeiras no parque, piqueniques na mata dos medos, ida aos jogos de andebol para apoiar a equipa, durante muitos anos. Apesar disto, o descanso nunca mais foi aquele da infância, porque a profissão sempre foi rainha nesta casa. Um modo de estar no mundo e na vida. O domingo para fazer mil e umas coisas, relatórios, trabalhos da licenciatura, investigação do mestrado, teses de doutoramento.

Hoje que os rapazes já voam com frequência para fora do ninho, fico-me para aqui a pensar na vontade de fazer arroz doce e um folar, pôr a mesa mais linda que souber, beber o café na mesa e demorar nas conversas. E tê-los ao pé de mim, a rir, homens feitos de um tempo apressado, mas disponiveis e atentos, sensiveis.

E reclamo domingos com rituais, para nos enlaçarmos um pouco mais, que a vida é fugidia, esgotante e instável e precisamos de temperar, com mestria, o sal e o mel dos dias.

Continuo a pensar que as coisas, quase todas as coisas, são quando um homem quiser, porque a liberdade de nos construirmos e nos dizermos não deve obedecer a um figurino único. Mas estou hoje mais convicta e mais segura de que o tradicional não fere, por si só, a inovação, nem a autenticidade, nem o progresso. E que isso só depende de cada um. 

Saudade? velhice? maturidade? Tudo junto, talvez, e a vontade de comer arroz doce junto dos que amo, aos domingos. Com tempo.

sábado, 12 de abril de 2014

Tempo pleno

Manhã cedo. Sábado. 
Saí de casa como sempre, para comprar o jornal e tomar café. Eterno ritual que me pacifica e me ajuda a respirar. Uma ligeira neblina cobre o dia, fresco e tranquilo. Percorro as ruas silenciosas, deambulo pelos meus pensamentos, faço listas de memórias e saudades bonitas. 
É abril, vai ser páscoa e os ovos de chocolate e as amêndoas piscam-nos os olhos em tentações doces. O verão aproxima-se a passos largos, o tempo corre ligeiro sem perdir licença e nós que do relógio muitas vezes somos escravos, ficamos surpreendidos com tanta velocidade. Não o conseguimos deter. 
E às vezes era necessário. Sentarmo-nos de baixo de uma árvore, descansar os olhos numa paisagem, abrir um livro e ler um poema.
Isso já fiz hoje.

Ausência                                                        
 
Por muito tempo achei que a ausência é falta.
pessoasE lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.
Carlos Drummond de Andrade, in 'O Corpo'

Este sábado está assim. Livre de obrigações e pleno de tempo. Para nos enchermos de nós. Plenamente.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Para além das palavras

Desde cedo me deslumbrei pelas palavras, ditas, escritas, inventadas. Um paixão assumida, ainda que discretamente, um pouco a medo, na intimidade do meu tempo e dos meus sonhos. As palavras a namorarem-me de mansinho, a acertarem com os estados de alma, às vezes a sairem em correntes de água brava, loucas de fúria, outros dias a transformarem-se em mantos calmos de lagoas esquecidas. As palavras desde a infância, companheiras de solidão na juventude, suporte de mimo no nascer dos filhos, rede de entendimento na maturidade dos anos. As palavras como continuidade e rasto de corpo, pensamento e emoção.   

As palavras dentro dos livros que outros escreveram, eu a procurá-las, a esbarrar nelas com surpresa e encantamento, sentir-lhes a beleza e a identidade.
Eu quase morta de espanto, por outros saberem colocar em linha as ideias mais claras, felizes e belas, autónomas e autênticas. Eu a pensar nesta forma de arte, que compõe e alisa, renova e oferece, perdura, liberta e enlaça.
Eu a ler títulos de obras e a ficar emocionada com a inteligência, a criatividade, o engenho, a quase perfeição.
Eu a espreitar livros e a desbravar mistérios, a perder-me noutros mundos, a vestir-me de novas paisagens. Eu a olhar pela janela e a querer correr mundo, escrever um livro, relatar vidas, prosseguir metáforas. Belas, como as do carteiro de Pablo Neruda. 

E no entanto, nunca o fiz. Nunca fui capaz de escrever um livro, ainda que de bolso e edição caseira, sem pretenções, nem escaparates. Escrever um livro, fazer-me escritora, ainda que pequena, ainda que apenas por uma vez, apenas para mim. Para dar forma a este sonho e a esta consumição de tanto querer e tanto amar.

Mas eu sei que não chega gostar de palavras e delas fazer manto, mesa e pão. Não chega gostar de escrever e vigiar a chegada da inspiração, para apanhar a onda e escorregar nas ideias até morrer na praia. 

É preciso, de certeza, uma dose imensa de trabalho, inquietação, persistência, silêncio, concentração no propósito. E talento, muito talento.
 Não tenho reunidas em mim, a maior parte destas qualidades. E tenho pena. Gosto tanto de palavras, gosto tanto de escrever. Mas um livro, não sei fazer.              

terça-feira, 8 de abril de 2014

Como sempre

A minha amiga fez anos. Mais um.  E como sempre não disse nada a ninguém. Como sempre muitos amigos telefonaram e alguns apareceram para um café. E risos de amizade antiga e incondicional.

A minha amiga não é jovem, mas tem um ar decidido e frontal e uma cabeça de gente que olha o mundo para lhe conhecer os truques e as novidades. A minha amiga, apesar de às vezes se virar para dentro, gosta de olhar para fora, para os lugares onde a vida acontece, com mistérios e enredos. A minha amiga conhece da vida os seus sabores mais exóticos e menos comuns, que viu e absorveu em paisagens, amores, livros e sonhos . A minha amiga podia ser estrangeira, tem ar de cidadã do mundo, pelas viagens que enceta sempre que a coração lhe pede liberdade e lonjura. De caminhos e encontros.

A minha amiga tem a arte de bem acolher e bem cuidar, estende a toalha da mesa e compõe vezes sem conta as chávenas do chá e a taça dos bombons que oferece nas tardes de conversa amena. A minha amiga dá-nos o seu melhor sofá e ajeita a posição da almofada, para que possamos descansar das aflições dos dias.

A minha amiga demora-se nas coisas que faz, livros que afaga, sopas que inventa, arrumações de mala de mulher distraída, pentear-se e pôr creme pela manhã. A minha amiga esquece-se das horas e do tempo e de outras coisas sem importância, mas não se esquece dos amigos. E nós não nos esquecemos dela.

Por isso, a minha amiga fez anos e nós fomos atrás dela e demos-lhe risos e abraços. E comemos um doce na casa dela. E ela deu-nos o seu melhor sofá e mandou-nos descansar. Como sempre.

sábado, 5 de abril de 2014

Retrato

No meio da arrumação, eis que descubro, numa prateleira mais escondida, um album de fotografias dos meus tempos de menina e moça. 21 anos e uma festa, lá para os lados da nossa terra. Muitas fotografias, todas com muitos sorrisos e felicidade, lembro-me.

No fim do album, meio esquecido, um retrato vosso, teu e da mãe, lindos e calmos, tu com o braço por cima do ombro dela, cabeça inclinada, sorriso meio nostálgico, ar de rapaz de 20 e tal anos. A mãe, de cabelo preto e ar doce, também a sorrir, entre a alegria e a saudade, parece. Por detrás, a paisagem vista da nossa casa, as árvores mesmo em frente da casa da vizinha, uma terra de milho pronto a debulhar, algumas flores brancas no nosso jardim. E a neblina. Sempre a neblina, o cartão de visita da nossa terra, quando o dia nasce pela madrugada e  as manhãs ficam frescas e cheias de um musgo húmido, salpicado de gotas de orvalho.

Fiquei cheia de alegria e saudade, a olhar para o vosso retrato. Tinha-me esquecido da cor do cabelo da mãe, assim nova e mulher de 50 anos. Da sua juventude, da sua pele e da sua beleza. Trigueira, como lá se diz. Cor do sol e da palha do milho. E tinha-me esquecido do teu ar de menino lindo e meio timido, sedutor e menineiro. Jovem e cheio de sonhos, discretos e um pouco escondidos, parece.

Olho para a fotografia e alegro-me, ainda que um pico de nostalgia me percorra o coração. Descubro de novo a nitidez dos afetos, em dois rostos de amor para sempre. Mano e mãe, num dia feliz.

E revejo-me, nesse dia, menina moça, com as certezas que possuia e uma fé inquieta para mudar o mundo. 
É bom começar assim um sábado cheia da vossa presença, amores da minha vida. 

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Telegrama em tempo de primavera

Andarás pelo tempo, leve como uma folha em dia de primavera, verde e nova, a rebentar em pequenas formas e cores, em cima de troncos quase perfeitos, assim o sentirás. Cumprirás o teu desejo lentamente, a apreciar o sabor da liberdade e dos sonhos, como se o presente só a ti pertencesse. 
Contente, olharás cada flor da rua mais bonita da cidade e sonharás de novo com o teu pleno amor, esse que escapa à compreensão das ideias mais certas dos homens em tempo de decisões sensatas. Não ouvirás a voz da razão, não conheces esse dialeto e não o queres de novo impregnado nas roupas antigas que ainda não deitaste fora. 
Não as queres, por mais que cheirem a históprias antigas que fazem sorrir e correrás a cobrir-te de um manto de luz, porque te sentes e sabes conhecedor de novas linguagens, essas que espreitam poderosas do fundo da tua alma errante.
Assim te lembro, enquando espreito o quintal cheio de flores que necessitam de ser cuidadas. 

Mas o tempo anda cheio de água das nuvens e não há paz nem sol que convide a uma tarde de jardinagem. Assim vão crescendo, sem que eu queira, ervas daninhas, silvas e urtigas que picam as mãos que tecem a ternura. 

Vou querer que o teu jardim se renove com força e circunstância, aquela que permite que brotem da terra as cores mais vivas da primavera, em forma de tufos de malmequeres, catos e amores perfeitos. Estes ultimos nem sempre resistem e crescem viçosos, mas acho que no lugar onde estás a terra parece forte, com jeito de mulher em tempo de gestação. 

Como sempre, espero que não te esqueças dos utensilios para cavar a terra e alindar os canteiros. A natureza, apesar de bela e promissora, não escapa às intempéries que muitas vezes invadem o doce correr do tempo e da paisagem