quinta-feira, 13 de junho de 2013

Explicação

Molhada pela chuva que caía, a mulher entrou na sala e disse, quase a medo:
- Estou sempre perto do coração das coisas...
E todos se viraram para a ver. Lamentou ter falado alto, não queria que a ouvissem, decerto não compreenderiam. Mas ela sabia que era assim, sempre fora, desde que se sentira gente e começara a olhar e sentir o mundo. Perto do coração das coisas, no lugar onde elas pulsam e se anunciam, através de sinais, pequenos indícios, um riso e um abanar de cabeça, um estremecer de ombros. Uma espécie de saber antes de ver ou uma espécie de ver antes de saber. E ficava à espera de confirmação e ela vinha. Num dia qualquer, quando menos esperava.

- Perto do coração das coisas? indagaram os que à volta da mulher se juntaram, para ouvir uma explicação plausível. Aproximaram-se dela e curiosos permaneceram. Queriam saber.
- Coisas, que coisas?
Aflita, procurou as ideias, concentrou-se na melhor forma de as traduzir e disse:
- Por exemplo, em noites de lua cheia, sei de que lado sopra o vento e respiro o cheiro das algas da praia que fica longe, para lá do fim do mundo e no entanto, junto à janela do meu quarto, o luar espraia-se no chão, a revelar o dourado do grão da areia e a espuma das pequenas vagas que batem nas rochas. Junto ao quarto as sinto e as oiço, apesar de tão longe estarem. E sorriu.
-Isso são sonhos - disseram as pessoas um pouco incrédulas - E que mais?

- Por exemplo, sinto quando se aproxima um tornado sobre o amor, na minha casa e alguns dos meus vão ficar devastados, com o coração apertado e o corpo trémulo, dorido pela secura do vento sobre a ternura, as promessas e o enamoramento. E consigo ouvir - muito antes que aconteça - os soluços sufocados  e o correr silencioso das lágrimas na almofada dos sonhos.Vejo tudo, sei de tudo e não consigo evitar...

- Isso são pressentimentos de mãe - disseram, já impacientes - E que mais?

- Em alguns momentos da tarde, com o pôr do sol, pressinto o desfazer da alegria e a chegada do desespero, em doses cada vez mais intensas, reparo em rostos fechados e vultos encostados às paredes, estão de pé, mas sinto-lhes a vontade de se deitarem no chão, contra as pedras frias de uma rua qualquer da cidade...sentem-se indiferentes à beleza do cair da noite, indignados que estão com a pobreza no correr dos dias...

De novo se impacientaram com as palavras da mulher e já irritados, disseram:
- Isso são apenas imagens, resultado da consciência social dos tempos atuais. Perto do coração das coisas? não conseguiste explicar, nem convencer. Não sabemos a que te referes.
E começaram a dispersar, lentamente

Então a mulher levantou a voz e sem temer disse:
- Perto do coração das coisas, sim, lá num sitio onde as palavras se dissipam e se dispensam porque os gestos, os sons, os sentidos, as cores, a beleza, se apresentam como passaporte válido para alcançar o sentido do tempo e do(s) lugar(es) para sermos. Inteiros e completos. Plenos. Com pessoas e futuro....

E respirando fundo, disse ainda:
- Mas as vezes não necessito de estar perto do coração das coisas para saber e sentir que há pessoas impenetráveis aos mistérios da vida e por isso insensíveis aos cheiros da pele e às expressões dos sentimentos que se revelam entre os homens e os tornam em absoluto diferentes de tudo o que existe. Para melhor.  Os insensíveis procuram a realidade e os factos e o bater do coração estás-lhes vedado, não conseguem sequer encontrar a sua cadência original, nem alegrar-se com um voo de aves, as palavras de um poema ou a secreta alegria de um encontro inesperado. Correm, ocupam-se, organizam-se, entram, saem, opinam. Velozes e infalíveis, praticam sete ofícios e nunca escutam o silêncio, têm medo.
E então tudo é inútil e nem mesmo estar perto do coração das coisas parece ser condição de entendimento e comunicação, disse a mulher, desaparecendo de mansinho por um raio de sol. Deixou a sala deserta.

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