quarta-feira, 22 de maio de 2013

Herança

É de madrugada e há 56 anos foi o dia em que nasci, mãe. Sei que foste ao lavadouro com as mulheres que estavam a trabalhar com a avó, comeste muitas cerejas e foste para casa já com dores. Depois eu nasci, no quarto da casa que já não existe, mas que muito amei. Parece que fiquei ligada a ti, perto da avò Carmina à espera da avó Rosa, a tua mãe, mulher da aldeia que ajudava a nascer as crianças. O mesmo fez à neta e bem. Dizem que o meu irmão, sentado ao colo do avô, no quintal, ia perguntando quando é que eu nascia e o avô dizia "à noitinha, com a lua cheia". E foi. Aquece-me esta ideia de ter nascido em casa, perto de todos.

Depois fui crescendo e como dizias, não te deixei dormir muito, menina rabina e chorona. Ainda sou. Menina é que parece que já não, mãe. Estou uma senhora - de idade, dizem os mais novos -  tal e qual eu dizia quando jovem era e me sentia capaz de mudar o mundo. Joan Baez, Moustaqui, Jacques Brel. Ouvir "Ne me quite pas", ler Simone de Beauvoir e sonhar com Paris. Ser escritora, mãe e correr mundo. Em liberdade. Tu sabes. Sempre com a cabeça noutro lugar. E tu em muitos dias, a dizer "mas porque não és como as outras raparigas?" e eu a encolher os ombros e a ir embora, fazer teatro e tu, entre o preocupada e o conformada. Como parece ser condição de mãe de uma jovem mulher. 

Agora tenho muitos dias em que não sinto a idade, apenas me sinto. Procurante, inquieta, apaixonada por causas e ideias, capaz de desbravar mundos e rematar conversas, reflexiva e intransigente, chata e obsessiva.  Assim sou eu. Herdei de ti uma alegria infantil e um sentido positivo da vida, o desejo de brincar, o interesse pelas pessoas, uma curiosidade que faz bem ao coração e ao futuro. Herdei também outras coisas, que são nossas, mãe, tu sabes, não vou falar delas. Passaste-as através do teu sangue, do teu ser, da tua juventude de mulher de 25 anos, da tua história. Assim se faz a vida. Assim se fez a minha. Parte dela, claro, porque a outra parte, fi-la eu, com a sabedoria que fui capaz de construir, a sorte que me aconteceu, os amigos que fui encontrando, os filhos que fiz e eduquei, a profissão que escolhi, os amores e desamores.Tu sabes, mãe.

Aqui estou eu. A fazer anos, neste dia, 22 de maio. Queria que estivesses aqui, porque a solidão é uma dor grande e o aconchego dos meus, uma equação incompleta. Faltas tu e fazes-me falta. Não há forma matemática nem milagrosa de resolver esta ausência. Já não sou jovem, mãe, já tenho rugas, já me dói o corpo e tenho cabelos brancos. Queria muito que os visses. E sobre eles conversássemos. Podia ser sobre a cor que melhor me fica quando os disfarço. E depois ríamos, de certeza. E eu veria os teus olhos castanhos, mornos e luzidios. E ficaria bem melhor. E tu também.

4 comentários:

  1. Às vezes leio os teus textos, sempre belos, sentidos, nos quais muitas vezes revejo as nossas vidas, e nunca encontro as palavras certas para retribuir. Mas hoje é um dia especial, que em tempos festejámos juntas, por isso te deixo aqui um forte abraço, muito apertado, e um grande beijo. Que continues muitos anos a presentearmos com as tuas palavras, nessa prosa poética que te revela. Parabéns Manela!

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