sábado, 7 de junho de 2014

Fontes de vida

Vai ser noite e o sol vai-se deitar. Percorro com o pensamento os campos da minha infância e juventude, rasgo paisagens e deito-as fora, arrumo outras com ternura paciente, dão algum cansaço, mas não as quero fora de mim, estão tatuadas na pele e na memória. Apagá-las seria um gesto imprudente. 

Neste vai e vem entre o gosto e o desgosto, surgem-me rostos imperfeitos e amados, gente de carne e osso, risos e lágirmas, cachos de uvas em cestos de vime, o cheiro da palha dos cabanais, as gotas de orvalho no verde do musgo, abelhas à volta das flores do jardim. Um gato a beber leite num prato velho em cima da eira.  E o sol da tarde e o fresco da manhã. E as cantigas à volta das espigas de milho, trabalho feito na eira pelas mulheres da casa e as vizinhas.

Entre os cheiros e as palavras, moça me tornei, curiosa e inqueita, atenta e pouco ordeira, que a vida se fundou regateada entre sonho e realidade. Entre a norma e a urgência, entre o ficar e o partir. Se não vou a pé, fujo em pensamento, remato em palavras, desdigo em rebelião. Assim foi.

E foram percorridos todos os caminhos, alguns atalhos entendidos como avenidas, espaços de liberdade e contramão, que a vida também se faz ao contrário, começar pelo fim para chegar ao principio. Doridas ficavam as pernas de andar para trás, às arrecuas, mas o treino deu-lhes o o jeito e o balanço certo para, em altura própria, correr para a frente. Uma espécie de refazer o que tinha sido menos bem feito. Retomar o percurso em tempo e espaço próprio.  Com avanços e sem medo.

Neste vai e vem de fim de tarde, guardo todos os amigos que me foram mostrando o norte, em diferentes mapas e latitudes, com a sabedoria de guias encartados e o cuidado de uma amizade fiel. Sem me prenderem os movimentos e amordaçarem os sonhos. Ali estavam ao som de um murmúrio e uma chamada urgente, prontos para acolherem penas ou saudarem vitórias. Discretos e destemidos, assim os sentia e assim os retinha como fonte de inspiração e navegação nas águas que escolhera para a bom porto chegar.
Amigos do peito, alguns ainda de hoje.

Neste vai e vem de fim de tarde, guardo a familia, esse primeiro caldo e lastro de todas as jornadas, umas felizes outras menos, as mãos da mãe, de volta dos cuidados diários, a sopa e a festa, a sua tenacidade e amor, as sentenças da avó, histórias de muitas vidas, o riso e a ternura do irmão, primeiro amigo de todos os dias e revelador de futuros, a alegria e a coragem da prima, a prontidão de tias, mulheres fortes e resistentes. Guardo-lhes o riso, as rugas, os abraços e as palavras.

Das palavras, minhas e dos outros, fui fazendo a minha casa na árvore, a cama no chão, o meu pranto e a minha alegria. Mastiguei-as e devolvi-as ao papel, num esforço de entender todas as consoantes e vogais dos verbos que me alimentavam o presente, ilustravam o passado e alvejavam o futuro. Por elas e com elas, namorei a vida e os amores, persegui sonhos e combati dúvidas, desdenhei destinos. 
Fiz-lhes figas. Nem sempre ganhei, mas ganhadora estou de uma vida preenchida. E não falei de tudo, porque de tudo não se pode falar.

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