domingo, 9 de fevereiro de 2014

Retrato de mulher

Para uma amiga...

Quando descansamos o olhar em si e para além do corpo, nos é permitido alcançar-lhe a alma, notam-se alguns movimentos tensos, trémulos, fugidios, assim um pouco desfocados e no entanto tão presentes, colados ao seu riso e ao seu choro, segunda pele de quem se debate e se esgueira das cinzas e da lama, sacudindo vezes sem conta teias e cheiros de memórias e dores longínquas. Levanta-se e cai em movimentos rítmicos, braços caídos e rosto levantado, ao seu redor é possível escutar algumas vozes de comando, sons de liberdade por entre acordes de orquestra ensaiada. Sentimo-la presa em paredes de vidro, rodeada de correntes e laços e nós um pouco invisíveis apesar das inúmeras tentativas de fuga que empreende em dias e noites um pouco mais longas.

Do corpo pequeno é possível vislumbrar-lhe o desejo e a alegria continuamente perseguidos em madrugadas poéticas, que enfrenta no escuro do futuro, olhos cerrados, coração solto e acalentado por dias de luz. Desenha e escreve e pensa e age, rebuscando pedaços de afetos que junta com cuidado, sabemo-la perita em artes de bem querer, artesã exímia de abraços mornos, fazedora de perguntas rápidas e inquietas, arquiteta de caminhos e casas por habitar. E constrói, na solidão do tempo em que renasce, túneis de acesso a avenidas largas, espaços com duplos sentidos, pontos de partida e regresso, que partilha com alguns, os que com ela sonham uma outra geografia de ser.

Permanentemente em vigília, é com as palavras que enfrenta as lutas mais cerradas, reveste-se dos seus significados e sentidos, procura-as e delas toma posse, aninha-as em lugares secretos e recônditos, ensaia, vezes sem conta o seu peso, medida e dimensão. Num namoro feroz, delas faz arremesso, tiro certeiro, carta aberta, revelação e boa nova. Persiste em conjugar contrários, certa de que os mistérios por desvendar não se inscrevem em linhas retas ou paisagens tranquilas. Conhece da vida o fio da navalha.

Amarga e doce, com riso solto em dias festivos, suspensa do sentido de si, pesquisa arduamente à sua volta, sinais que legitimem a verdade da sua procura e da sua luta. E nos silêncios que inundam as tréguas das batalhas consumadas, descobrimos-la às vezes ansiosa, exausta, triste. 
Em algumas noites, sabemos de manhã, as lágrimas foram um rio largo e pouco domado, lavando as areias soltas que impediam, momentaneamente, a visão do presente. Ao amanhecer, a luz repõe de novo a claridade sobre o dia, porque ela raramente desiste. Acompanha-a uma inconformada capacidade de decifrar o pulsar do tempo e da vida, feita gente, paixão, medo e coragem. Sentimo-la desassossegada e inquieta sabendo que essas são as suas armas mais poderosas, capazes de afastar intempéries de nostalgia e passividade.

E por isso estamos, os que com ela privam, gratos. Porque ela reafirma a nossa vontade mais secreta de semear campos de verde em cidades cinzentas. Mesmo quando o nevoeiro persiste, dia após dia, em tapar a luz do sol.



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