Para uma amiga...
Quando descansamos o olhar em si
e para além do corpo, nos é permitido alcançar-lhe a alma, notam-se alguns
movimentos tensos, trémulos, fugidios, assim um pouco desfocados e no entanto
tão presentes, colados ao seu riso e ao seu choro, segunda pele de quem se
debate e se esgueira das cinzas e da lama, sacudindo vezes sem conta teias e
cheiros de memórias e dores longínquas. Levanta-se e cai em movimentos
rítmicos, braços caídos e rosto levantado, ao seu redor é possível escutar
algumas vozes de comando, sons de liberdade por entre acordes de orquestra ensaiada.
Sentimo-la presa em paredes de vidro, rodeada de correntes e laços e nós um
pouco invisíveis apesar das inúmeras tentativas de fuga que empreende em dias e
noites um pouco mais longas.
Do corpo pequeno é possível
vislumbrar-lhe o desejo e a alegria continuamente perseguidos em madrugadas
poéticas, que enfrenta no escuro do futuro, olhos cerrados, coração solto e acalentado
por dias de luz. Desenha e escreve e pensa e age, rebuscando pedaços de afetos
que junta com cuidado, sabemo-la perita em artes de bem querer, artesã exímia
de abraços mornos, fazedora de perguntas rápidas e inquietas, arquiteta de
caminhos e casas por habitar. E constrói, na solidão do tempo em que renasce,
túneis de acesso a avenidas largas, espaços com duplos sentidos, pontos de
partida e regresso, que partilha com alguns, os que com ela sonham uma outra
geografia de ser.
Permanentemente em vigília, é com
as palavras que enfrenta as lutas mais cerradas, reveste-se dos seus significados
e sentidos, procura-as e delas toma posse, aninha-as em lugares secretos e recônditos,
ensaia, vezes sem conta o seu peso, medida e dimensão. Num namoro feroz, delas
faz arremesso, tiro certeiro, carta aberta, revelação e boa nova. Persiste em
conjugar contrários, certa de que os mistérios por desvendar não se inscrevem
em linhas retas ou paisagens tranquilas. Conhece da vida o fio da navalha.
Amarga e doce, com riso solto em
dias festivos, suspensa do sentido de si, pesquisa arduamente à sua
volta, sinais que legitimem a verdade da sua procura e da sua luta. E nos
silêncios que inundam as tréguas das batalhas consumadas, descobrimos-la às
vezes ansiosa, exausta, triste.
Em algumas noites, sabemos de manhã, as
lágrimas foram um rio largo e pouco domado, lavando as areias soltas que
impediam, momentaneamente, a visão do presente. Ao amanhecer, a luz repõe de
novo a claridade sobre o dia, porque ela raramente desiste. Acompanha-a
uma inconformada capacidade de decifrar o pulsar do tempo e da vida, feita
gente, paixão, medo e coragem. Sentimo-la desassossegada e inquieta sabendo que
essas são as suas armas mais poderosas, capazes de afastar intempéries de
nostalgia e passividade.
E por isso estamos, os que com
ela privam, gratos. Porque ela reafirma a nossa vontade mais secreta de semear
campos de verde em cidades cinzentas. Mesmo quando o nevoeiro persiste, dia
após dia, em tapar a luz do sol.
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