sábado, 10 de novembro de 2018

Entre memórias e resistência

Uma manha de chuva, neste sábado sombrio. E, no entanto, uma leve doçura embala o dia, num pleno lamento, a pedir encantos e alegria. Olho para a nossa foto, pregada na parede, em dia de sol e tempo de verão. Sorrimos os três, a mãe e os meninos, jovens e contentes, em jeito de espreitar o mundo e o refazer. Percorro esse tempo e esse lugar, lentamente, para não acossar a saudade, essa farpa permanente da vida cumprida. Detenho-me na beleza dos risos e respiro. Amo-vos. 

E encontro outras fotos e imagens, do lugar onde estou, aqui no sótão. Meninos e meninas da escola, a sorrir, amigas e amigos de hoje e de sempre, nós, pequenos, junto ao loureiro da casa da avó, manos, avós e mães, sobrinhos, desenhos e postais, pinturas e quadros. E reparo mais uma vez na lonjura do tempo e das raízes. E confirmo que o que vejo me enlaça e contém, me ampara e me dita o que sou. Eu e nós, os de casa e outros, porque o sótão e a casa se erguem com apoio de muitos, viver não é uma epopeia solitária, requer compromissos de muitas mãos e corações.  

Cheira a infância de casa e de fora. Os vossos rostos de meninos pequenos, hoje filhos grandes noutras casas e desejos. O vosso atrevimento e a vossa alegria de gente a crescer; pinturas de meninos da escola, em grupo, a brincar no recreio; eu desenhada, com muitas cores, cabelos compridos e riso grande, vestido com laços, até aos pés. Eu e tu, novos, apaixonados e senhores do mundo e da utopia. A tua foto, mãe, com riso leve e pele morena. Uma saudade presente, quando olho para as minhas mãos, que estão a ficar iguais às tuas. O cravo do 25 de abril, num vermelho que não se desbota, um quadro dos direitos do homem, fotos de Sebastião Salgado, a preto e branco, com rostos que nos interrogam, postais e objetos de outros lugares e outras culturas. Céus azuis, mares longos, cidades belas. E livros, muitos livros. Prosa, poesia, ensaios, compêndios, ciências sociais, investigação, educação de infância, política.

E espanto-me, mais uma vez, com a força enorme da escrita, homens e mulheres que no silêncio do seu tempo, procuraram as palavras para pensar o mundo e o dizer. E ficarem mais ou menos eternos, espalhados por muitos cantos e lugares, em cima de bancos de jardim, em estantes e bibliotecas, na mesa de cabeceira, dentro de malas de viagem. E admiro-me com tanta sabedoria, coragem e trabalho, para partilharem o seu conhecimento, sensibilidade e sonhos. Um ato de cultura e desenvolvimento, um ato de amor e resistência contra o esquecimento. 

Porque é isso que as obras culturais nos dão, a nossa caminhada pelo mundo. Quem fomos e em quem nos tornámos, enquanto pessoas situadas num tempo e num lugar. E é por isso também que enchemos os nossos sótãos de fotos como marca e presença para guardar o passado e prevenir a dissolvência do futuro. Risos, pele, abraços, colos, de ontem e de hoje, para não nos esquecermos de nós e da nossa história. 
Porque nos queremos com passos na terra, autores da nossa vida, a combater o fim de prazos de validade. Queremo-nos assim e não de outra forma, gente capaz de fazer, pensar e guardar a vida. Com os seus, os de casa e todos os outros, que nos amam e nos cuidam. Hoje e sempre. 


sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Cidade(s)...e cultura(s)

Andamos pela cidade, com pés de bailarina e olhos de guardar imagens e alegramo-nos com a água fria dos canais, a força e beleza das flores à entrada das casas, o intimismo de lojas e cafés, zelosamente decorados, a elegância das mulheres e homens em bicicletas, com meninos pequenos, seguros e confiantes, a ver o mundo. As casas, de castanho e ocre, esteticamente cuidadas, enormes e consistentes, portadas abertas para a rua, em convívio ameno com jardins e árvores que deixam cair as folhas, num outono leve, de cores belas e quentes. As casas, os barcos, as bicicletas, sem agressões ambientais e torres de modernismo duvidoso. E no entanto, não cheira a tradição sem sentido, mas a cultura (bem) cuidada.

Fond d automne avec un arbre et une bicycletteE pensamos que assim é que tem que ser. Um mundo criado pelos humanos, a fazer justiça às suas necessidades, de beleza, harmonia, cultura e dedicação. E direitos.

Um mundo para o presente, sem descuidar o passado e preparando, com convicção, o futuro. Um mundo com vida decente, trabalho útil e satisfatório, que responda a necessidades e desejos, um mundo com cultura(s), a(s) de todos, onde todos têm lugar e tempo para o criar e fruir. Um mundo menos resignado e submisso, mais criativo e desafiador, onde possamos pensar, sentir e ousar, sem obrigação cega de correr e lutar por um lugar ao sol. Um éden? Não, apenas um sítio justo e bom para se ser gente, com direitos e deveres não condicionados pelas raízes de uma história pessoal e social e pelas desigualdades relativas ao berço em que cada um nasceu. 

Um mundo onde as crianças também possam ter a uma pedagogia "pouco presa" e sem medo. Grupos de crianças pela cidade, com adultos sorridentes, que param e compõem laços na cabeça, riem alto com as falas dos mais novos, genuinamente envolvidos, "comboios" de dois a dois, com alguns com três e outros só um, pouco alinhados, mas muito tranquilos, adultos seguros e calmos, sem vozes altas e cara de poucos amigos. Uma alegria para os nossos olhos, ter visto esta forma de fazer passeios pela cidade a lembrar que precisamos de a conhecer com gosto, liberdade e alegria, para a integrar como lugar que prolonga a escola, uma comunidade que educa pelas suas instituições, espaços, culturas, lugares, cheiros, cores, movimento e luz. Uma educação situada in loco, com conhecimento, amor e presença. 

E assim, os meninos e meninas nas escolas, desde muito cedo, aprenderão a amar a cultura humana, a (re)criá-la e a protegê-la. A dotá-la de mais sentido para si e para os outros, adotando medidas e atitudes de cuidado e atenção. Porque não nascemos prontos para cuidar de nós e do mundo, essa tem que ser uma condição ensinada e apreendida desde que se nasce, entre os homens e as mulheres que amam os outros homens e mulheres, o seu tempo e as cidades.
E as sabem reconstruir, como amigas de todos e sobretudo, belas. Como esta.   
  

sábado, 13 de outubro de 2018

Recomeço(s)...em passeio matinal...

Manha fresca e com sol dourado. O tempo ameno convida a um passeio, por entre árvores altas e folhas secas, em jeito de cama no chão, a confirmar que é outono. Invade-nos uma lentidão mansa e contemplativa. 

Parece ser tempo de abandonar o verão, deixar de lado o esplendor dos dias, encerrar as tardes longas na areia, arrumar os vestidos leves na gaveta. Depois, baixar um pouco as persianas, dar um jeito no canto do sofá, procurar a manta de tapar os pés, agarrar o casaco de trazer por casa e prepararmo-nos para acolher o outono, que teima em não se fazer notar, ofuscado que anda pelos dias ainda quentes.  

Imagem relacionadaE vai ser bom e disso precisamos, porque o descanso já se foi há muito tempo e já há muito tempo retomámos o trabalho. As salas de aula já estão cheias de meninos e meninas, que ávidos, querem brincar e aprender, por entre conversas boas, lágrimas teimosas e ruído intenso. 
E os professores já regressaram ao seu posto, lado a lado com pequenos e grandes, a construir todos os dias, com detalhe e intencionalidade, uma escola hospitaleira e cuidada, onde saiba bem-estar, pertencer e participar. E retomam de novo aos lugares comuns, que sendo velhos, viram novos, dar colo e abraçar, mimar e acolher, propor e interagir, observar e planear, refletir e avançar. Serena e convictamente, sem desistir de ninguém, com fé em todos. Porque é para todos que a pedagogia se faz, diferenciada, justa e criativa. Com ética e estética. 

Por nós, sem estar com meninos e meninas, sentimos a sua falta, neste outono. Sobretudo das conversas longas, entre perguntas, espantos e alegria. Da azáfama em parceria, com pinturas, desenhos, negociações, histórias, canções e corridas no recreio. Ouvimos, quase todos os dias, lá longe, fora e dentro de nós, manifestações e ecos da(s) infância(s).

Por aqui, resta-nos, neste ano letivo, as aulas com crescidos, que querem, no futuro, ser educadores. E para que tudo faça sentido, aplicamo-nos também em conversas longas, por entre textos, relatos de experiências, discussões, confrontos, desafios. Mas não é a mesma coisa e é difícil. 
Ser grande implica ter alguns anos de história(s) e vida(s), construídas por aprendizagens e descobertas, de braço dado com estereótipos, preconceitos e uma certa forma de ver o mundo e a escola. Pormo-nos em questão, rompendo com ideias e verdades tidas como certas e adquiridas, não é tarefa fácil, ainda que seja imprescindível.

Precisamos assim do outono. Com mil cores, tonalidades e promessas. Com beleza e muita lentidão, para repor a serenidade, refletir e arrumar ideias, deitar fora os desperdícios, consagrar a energia inovadora a bons recomeços. 
Já é tarde? não, estamos ainda muito a tempo, outubro vai a meio, o outono apresenta-se agora com mais força e circunstância. Assim o comprovámos hoje no parque, esta manha. Entre folhas e tempo fresco. 


segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Mar por perto

Já chegámos às férias e o mar está à nossa frente. Vigoroso e ameno, uma mistura que consola o corpo e a alma e dá tréguas ao turbilhão do ano de trabalho. O tempo rola lento, ainda que imparável e podemos, sem pressas, alongar os minutos que nos cercam. Estamos livres de compromissos e dispostos à preguiça. Boa.

Imagem relacionadaOlhamos a água azul, o vai e vem do seu movimento, as pequenas conchas espalhadas na areia. Entramos no mar, sentimos o sal na boca e o rosto fresco e molhado. Deitamos-nos na areia, folheamos o livro escolhido, trocamos conversas e risos soltos. Observamos quem nos rodeia, apreciamos-lhes os gestos e adivinhamos pedaços da sua vida, um pouco à deriva, como quem cria um filme ou escreve uma história. Temos tempo que sobra para esta autoria.

E entretanto não descuramos as nossas intenções, de nos cuidarmos por dentro e por fora, mantermos-nos vivos e atentos, saldar pequenas dividas e sobressaltos, redimensionar a infinita alegria de estarmos vivos e incluídos. Celebrar a pertença, como vinculo e raiz. 

E se possível, ser poeta e artesão em ritmo próprio. Construir um castelo junto ao mar, escrever nomes intensos na areia, compor sonetos entre as dunas. Para sentir de que somos feitos e reforçar a inclusão no mundo e no tempo.
Neste verão, para o viver. Seremos capazes?

sexta-feira, 3 de agosto de 2018

Segurar os filhos pelos calções

Em cima do escadote, a filha alongava o corpo e a energia para colocar o estore na janela. Rodava a cabeça, espreitava para o caixilho, observava o material, acertava estratégias e pontos de vista, discutindo-as com os que por ali estavam. O pai, em justo apoio, pés no chão e olhos ao alto, segurava-a pela presilha dos calções, mostrando, disfarçadamente, o ceticismo com que olhava para o sucesso da iniciativa. Algumas opiniões contrárias, chamadas de atenção técnicas, misturada com a paciência de dar tempo às tentativas e erros. E sem nunca largar a presilha dos calções.

Imagem relacionadaFiquei a vê-los, ela jovem, bonita e assertiva, pouco dada a mandar a tolha ao chão, capaz de teimar e levar a tarefa a bom porto, assim pensa e para isso se esforça. O pai, mestre da arte de pensar e fazer bem as coisas com que se edifica uma casa e uma família. Ali estavam, em acertos que iam e vinham, ligados pelos afetos de uma vida e sem nunca largar a presilha dos calções.

Fiquei a vê-los e a admirar esta relação e esta cumplicidade, trocada em vozes altas, com opiniões e contraditórios, tão ao jeito de quem se escuta, se respeita e se ampara. Discordar e anuir, propor e confrontar, esperar e apoiar. Com tempo para a experiência e o ver para crer, fundamental na aprendizagem e na vida. 

E pensei que é assim que fazemos com os filhos, enquanto crescem e para sempre: deixá-los subir até ao lugar que querem, espreitando os perigos dos escadotes e dos tombos, dando tempo para que experimentem, na primeira pessoa, as circunstâncias e os constrangimentos. Para que possam ser autores dos seus sonhos e senhores da sua vida. Sem nunca largar a presilha dos calções...


quinta-feira, 28 de junho de 2018

Mistério

Percorro algumas lembranças do teu nome e fico alerta com a força da memória. Inauguro o dia a declinar pecados, espantada com a rasteira do tempo, que sendo longo, se afigura curto. Parece que foi ontem que as vagas do mar se desfizeram em espuma e que as rochas, lisas e molhadas, pediam afagos de mãos. Confirmo, para não me desacreditar, que já passaram muitas luas e poentes e que o futuro habilmente projetado é hoje apenas este presente. Ainda assim debato-me contra a inevitabilidade e o destino, rompendo o círculo das rotinas consentidas.

Imagem relacionadaApareces de corpo inteiro e voz absoluta, lançando mão da tua alegria e sedução. Induzes pequenas graças e fios de seda, tecidos com a paciência dos sagazes. Estás em qualquer sítio, porque és para além de tudo, o fim e o principio. Dos poemas, dos dias de luz, da liberdade sem dono, do musgo e da eira, do verão e do inverno. Podemos ver-te em todas as estações, resgatando causas e afetos, com mãos de embalo e uma pequena voz trémula. Não é visível a olho nu, a tua força e a tua vantagem.  

Por isso, viver sem ti é viver pobre e combalido. É viver pela metade e por empréstimo, porque tu tens todas as formas de ser e ainda muitas outras.  Foges quando te chamam, permaneces de pedra e cal quando te expulsam, vives em morte, morres em vida. Queremos explicar o teu mistério e não há forma, nem palavras, nem circunstâncias, que o saúdem e justifiquem. Apenas que és e existes. Sem mais razões e premissas. 

sexta-feira, 15 de junho de 2018

Monólogo noturno

Que noite longa. Uma aragem fresca, a luz doce da lua, folhas sopradas pelo vento, um pássaro assustado e uma estrela cadente. Uma noite longa.

Onde está o dia, louco de alegria? e o colo para nos segurar? onde está a doçura feita abraço, o aconchego do riso, as palavras quentes e soletradas? onde está a boneca de trapos, o campo de trigo e o cantar das cigarras, o calor húmido contra a pele? onde está a água fria da fonte, o musgo verde para o presépio, os poemas escritos em dor corrente, o portão aberto junto ao caminho?

Imagem relacionadaOnde estão os sonhos e os seus arautos, os anjos de fé e a romaria, os vestidos e laços de domingo, o arroz doce com canela, a mesa posta para quem chegar? onde estão as flores do jardim, os gatos pardos à janela, a casa da mestra dos meninos, o cheiro da terra molhada, ao fim do dia?

Onde está a nossa sede e a nossa dor, as pérolas do cansaço da luta dos dias, a raiva amena para se ser gente, as sombras esguias do nosso ser? onde está o futuro radioso de luz e os diários escritos com rebeldia, as montanhas a perder de vista, as escadas da casa para ver o dia? onde está a liberdade e a nostalgia, as ruas estreitas e a respiração contida, os segredos guardados no pó da gaveta, as fotos amarelas e o pano bordado?  

Onde estamos nós, afogados de tudo, ausentes de outros e de amor presente, cativos do mundo e das suas loucuras, perenes de fome e de certezas? Onde estamos aqui de frente, com terra à volta e ideias cansadas, sem vislumbrar o fim do caminho, enseada grande depois das giestas. 

Onde está a lonjura, os cheiros frescos e os lençóis lavados, a cama macia e a companhia?  Onde está quem somos e o que prometemos, quando incautos, aqui chegámos, limpos de desanimo e plenos de alegria. 

Onde está?