sábado, 3 de março de 2018

As palavras e o tempo

Computador ligado e uma tarefa profissional entre mãos, sem jeito de começar. 

Lá fora, uma tarde lenta e fria, com chuva boa a escorrer nas pedras pretas de xisto. Sente-se o silêncio da paisagem, a sua claridade mansa, o cheiro da terra, tudo húmido e molhado, tudo cinza e verde, gotas transparentes nas árvores, como pérolas. Tudo muito belo, original e nu, quase perfeito. Voltamos ao início da tarefa, compomos o corpo no lugar e os jornais na mesa, soletramos o objetivo. E de novo nos perdemos, dispersas na rua e em nós, à procura da brancura pura e exata das palavras.

Será que as palavras, com o tempo, perdem a sua luz primeira? será que sucumbem ao desgaste, enferrujam e desbotam, vencidas pelo peso da fuga dos sonhos, que agora dormem sonos longos, mas que foram outrora vigília e razão de todos os gestos? Será que deixam a sua senda de esteira e coração dos verdes anos, presença assídua de dias e noites, candeia certa para iluminar caminhos?

Será que as palavras se enredam, tímidas, no branco dos cabelos e nos traços das rugas que cercam a pele e as memórias? será que se impressionam, perdem fulgor e ousadia e recatadas, preferem as pantufas nos pés e a manta no colo? Será que se tornam vulgares, de significação mediana, servindo, sem outros caprichos, a natureza pobre das nossas vidas gastas?

Será que as palavras, como nós, se entristecem e desistem do que ainda falta fazer, receando que o tempo não cumpra, fiel e zeloso, outras promessas que guardamos em nós? Aquelas que são o antídoto para a morte lenta e a fealdade do mundo? Será que as palavras, como nós, envelhecem e se perdem, caladas, no destino que as persegue? 

Suspeito que sim. Até lá, neste dia belo de chuva, dedilho-as, no teclado do computador, convocando-as para o labor a que estão obrigadas como contadoras da beleza dos dias. Enquanto é tempo e têm voz. Sem hipótese de desistência prematura. 

2 comentários:

  1. Gostei muito destas palavras professora. Fabuloso!

    Cumprimentos,

    de uma aluna que a admira e tem saudades das suas aulas inspiradoras e únicas.

    Inês V

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    1. Obrigada Inês! nem tinha visto que me tinha deixado um comentário..ainda bem que gostou e disse...sabe que às vezes ser professora é tão difícil! obrigada

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