quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

O melhor de mim

O dia está cinzento, já fui sentir o vento e a chuva lá fora, para me demorar sozinha junto de mim e de ti, que nasceste há 32 anos. Uma eternidade e no entanto, quase que foi ontem, tão vivas são as imagens que guardo. No amor e na maternidade, o tempo é outro.

Lembro-me de quase tudo desse sábado. Do vento, da chuva e sobretudo do meu coração jovem à tua espera, entre a ansiedade e a alegria. E da minha surpresa por teres chegado rápido e sem alaridos. Um choro alto que se aquietou junto ao meu corpo. Uma pele suave, um calor imenso, um milagre e uma certeza, a de uma relação para a vida toda. Sem retorno. Uma ponta de medo, também, por essa lonjura e esse compromisso.  

Depois foi crescer. Muito e depressa, por entre cheiros, risos, beijos, lágrimas. O teu rosto lindo, a tua sensibilidade, a tua atenção, timidez e perspicácia. As perguntas certeiras, os silêncios prolongados, os teus olhos nos meus, a tua mão na minha, a tua procura constante pelo sentido do mundo. E eu às vezes, sem saber como o revelar, perdida entre o mistério da tua pessoa, as minhas fragilidades e a complexidade da vida lá fora. Nem sempre fui, talvez, a melhor mãe do mundo, mas fui contigo, o melhor que pude ser. Em amor, respeito, princípios. Dar-te o melhor de mim, foi sempre a única possibilidade deste amor que cresceu contigo, por ti e para ti. 

Hoje que fazes 32 anos, quero agradecer-te por seres meu filho e por me teres ensinado os desafios de ser mãe e ajudar a crescer uma pessoa. E por me teres dado memórias e lembranças boas, que guardo inteiras no meu coração e combatem as rugas atrevidas que teimam em aparecer. A tua meninice em mim, é talvez um dos melhores bálsamos para enfrentar o futuro. 

Parabéns, meu filho. Amo-te.   

sábado, 30 de dezembro de 2017

As nossas pessoas

As nossas pessoas, são nossas, desde sempre. Moram perto e longe, como calha, mas têm lugar cativo no turbilhão dos dias que acontecem. Sempre à mão de semear, cultivam, em boas jornadas, bocados de terra onde germinam as utopias. Conhecem-nos e vigiam-nos, com olhares disfarçados e discretos, porque não são intrusivos nem esfuziantes. As nossas pessoas estão lá, onde precisamos e nem sempre se mostram, porque conhecem a liberdade como principio de relação. Mas respondem sempre à chamada e nunca mordem a corda do nosso fio de prumo.

https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhXWYCeUXZkJkib2ocCsq4TrfXdVewM-LEgXfGN2pt7EoI5rRB5E9podwC2G-7K_LrMpA8ms7uh1XanvS3rOkGfqequBXt3ZXI8GNTIpIV8ZuhgMkNOyLar-HKO_VJJ5cQywEC8etYwWz4/s1600/Curso+Pintura+naif.jpgAs nossas pessoas, são nossas, não porque as aprisionamos em nós, em jeito de troféu ou montra, mas porque fundam muito do que aprendemos a amar. Misturam coisas connosco e fazem parte de histórias a que damos vida, que de outra forma não teria sentido. As nossas pessoas conhecem as nossas palavras e propósitos e entendem-lhes o futuro.  Por isso velam por nós e às vezes chamamos-lhe anjos, amigos, pais, filhos ou irmãos. As nossas pessoas são do nosso sangue e do nosso coração, por sorte, escolha e condição.  

As nossas pessoas dão-nos alento, identidade e certezas. Às vezes, de braço dado com o destino, trocam-nos as voltas e deixam-nos sem pé, bebemos as lágrimas e escondemos a dor da sua partida. Teimosos, recompomos os dias e voltamos a convocá-las para a nossa casa e o nosso tempo. Em fotografias, poemas, saudades, memórias. Porque são as nossas pessoas e fazem absolutamente parte de nós. 


A casa

A casa tem a nossa vida
a casa está cheia de nós
de coisas arrumadas e desarrumadas
tapetes sapatos livros
retratos discos
quadros
as naturezas mortas estão todas vivas
alimentam-se de nós
e há móveis que foram de outras casas
e de pessoas que fomos nós antes de nós
a casa tem seus ritos e seus ritmos
canetas de tinta permanente
cadernos e papéis sobre a secretária
madeiras e paredes connosco dentro
a mesa com seus talheres e seus copos
e o nosso pão e o nosso vinho
camas por fazer e camas já vestidas
cadeiras onde nos sentamos
e mesmo sem nós ficam sentadas
a casa com seus passos e seu espaço
de silêncios
a casa com sua fala
a casa com sua alma.

Manuel Alegre "Nada está escrito", 2012


quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Assim me queria

Queria um oficio para trabalhar palavras como essência do mundo. Apresentar-me artesã das coisas principais e saber, na aflição dos dias, escolher as doses certas para o nosso viver. Conseguir, na imensidão do tempo, convocar o melhor de cada um, em doses justas e perfeitas. Caldear, na bruma do que somos, trevas e luz, alegria e choro, cansaço e rebeldia e obter a sua dimensão exata. 

https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/9/9b/Mo%C3%A7a_no_Trigal_-_c.1916.jpgQueria apenas esculpir o trigo apropriado para as sementeiras da terra que nos circundam, misturar cozedura do pão e amor crescente, adubo seguro para os afetos. E apresentá-los como a coisa principal, no palco da nossa vida. Retirar, com minúcia atenta, os desperdícios que nos moem a alma, limpá-la de todas as impurezas, conseguir a obra mais clara de nós. Esculpir apenas e só o essencial.

Queria sacudir de mim os restos de tudo que nos consome, libertar o corpo e o pensamento de ideias inúteis, pequenos delírios das nossas certezas e vaidades, coisas breves e no entanto, tão empolgadas na hierarquia do que vivemos.

Queria esculpir as palavras certas e necessárias deste oficio que me persegue e de que não dou conta. Fazer um glossário novo, pequeno e essencial, acertar os seus sinónimos, perseguir os contrários, enunciar outros sentidos. 

Queria um oficio de trabalhar palavras como essência do mundo, mas sei que é tarefa de monta e coisa improvável. Não impede que me persiga, a cada dia e hoje também, nesta espera pelo ano novo.


domingo, 17 de dezembro de 2017

Natal. Outra vez.

Vai ser natal. Outra vez.

Nas escolas, a semana foi de festa, correrias e agitação. Esperemos que de bem com a pedagogia, porque o stress imposto e adultizado, não casa com o menino ao colo da sua mãe e o ar sossegado do burro na manjedoura. Nem com as prendas do pai natal, esse velhinho amigo, que dizemos lembrar-se de todos, mas sabemos não ser verdade, porque o mundo é infinito e infinitas são também as condições dos meninos e meninas, algumas escandalosamente injustas, que não há como fazer milagres lá do céu. A fazer, seria aqui da terra, com a exigência de uma vida certa e justa a que todos têm direito. Mas andamos tão ocupados e concentrados em nós, quase sempre distraídos e resignados, face à estranha ordem das coisas. E queremos? Sim, pois, queremos...então, temos que fazer acontecer, porque a única coisa que cai do céu é a chuva...

http://www.obrasdarte.com/wp-content/uploads/2015/01/Waldomiro_de_Deus_Casal_Feliz.jpgVai ser natal. Outra vez. E rendemo-nos de novo à ceia e ao amor dos nossos junto à mesa, a agradecer estarmos vivos, com saúde e em família. Que diminui e aumenta, porque a vida é um rio que não pára, misturam-se as partidas e as chegadas, provando que estamos todos no cais, a acolher e a largar quem nos fez e quem fizemos, neste lugar que é a terra. Do cuidado com que nos criaram, do cuidado que soubemos e pudemos dar a quem, do nosso coração e da nossa barriga, lançámos para o mundo.

Vai ser natal. Outra vez. E aceitamos os risos e as boas festas, lembramos os amigos e agradecemos a sua presença na nossa vida. Pelas rabanadas e pelas azevias, mas sobretudo pelo tempo que nos concedem, que roubam ao seu destino, para connosco construírem dias novos e ousados. Que são uma luz e um desafio para o nosso viver e a nossa procura de sermos pessoas.

Vai ser natal. Outra vez. E apesar de podermos estar mais sós e menos contentes, vamos acertar o dia e a noite com a nossa sorte, banindo o desconforto do que não pode ser. Da pobreza que existe, dos atropelos à dignidade, das vidas maltratadas, dos amores que já partiram, dos sonhos não cumpridos. E se rezarmos, saibamos que podemos e devemos, para além disso, renovar os nossos compromissos de cuidado ético e convictamente atento para com o mundo, na vida dos que nos cercam.

Porque vai ser natal. Outra vez.