sábado, 5 de novembro de 2016

Cuidar de si e dos outros

Sábado com chuva e céu cinzento, neste doce mês de novembro. Gosto desta acalmia e deste molhado, uma espécie de cortina parda dos dias, a embalar-nos de mansinho, para que possamos conter o coração dentro do peito e sossegar as duvidas e desatinos. Uma forma de ato de contrição, a propor resumos do que somos e fazemos neste lento correr dos dias e dos anos. 

Enrolo-me na escrita das palavras, nesta manha de aquecer segredos. Evito, de forma dissimulada e temporariamente, pensar sobre o que devo pensar. Um desafio lançado para partilhar com outros, práticas sobre o cuidar, na educação de infância. E se são práticas têm conceções, porque o fazer pedagógico não é neutro nem desprovido de intenções, mobilizando diariamente e em ação, as nossas ideias, princípios, conceitos, amealhados e investidos durante o nosso desenvolvimento pessoal e profissional. Somos o que pudemos aprender e viver em contexto. Portadores de ideias e perspetivas, praticamos a pedagogia, investindo-a de múltiplas intenções, muitas das quais nos escapam e não poucas vezes, contrariam os ditos que apregoamos. A educação, como sabemos, não é uma matéria que se ensine mas uma atitude que reflete o confronto das vivências do educando que fomos com as do educador que pretendemos ser (João dos Santos).

Resultado de imagem para pinturas naifPor isso, quando me detenho no cuidar, para o pensar e ilustrar no contexto educativo e na práxis, fico toldada na sua explicitação. Assaltam-me diferentes ideias, consulto definições, tento fazer a revisão da literatura. Separo águas e entendo-me quanto ao que cuidar não é, afastando desta dimensão os cuidados parcelares de resposta às necessidades biológicas das crianças (higiene, sono, alimentação...), numa espécie de cumprimento de obrigações básicas, ainda que as mesmas sejam fundamentais para o sentimento de bem-estar e bom crescimento. Um direito. Mas não chega e é pouco. Nem só de pão vive o homem...

No contexto de uma sala de creche e jardim de infância, de que precisam as crianças para além do pão? o que significa cuidar? como cuidamos e de que cuidamos? Cuidamos de garantir a construção de um currículo significativo e à medida do que são e têm direito a vir a ser, gente que aprende a cuidar, cuidando-se, num ambiente de respeito, reforço de identidade(s) pessoal e familiar? cuidamos das suas famílias e da sua participação no quotidiano da sala? Cuidamos, pela garantia da apropriação da autonomia de grandes e pequenos, gente que pensa e faz e fala, com direito à palavra e à expressão, nas suas múltiplas dimensões? cuidamos do choro, da alegria, da liberdade e da democracia? cuidamos para que aprendam a cuidar e zelem por si e pelos outros, sabendo que essa é a condição de ser pessoa e estar no mundo? Cuidamos para que o mundo seja mais justo e os meninos, homens e mulheres, mais ativos e construtores dos seus dias?  Cuidamos para aniquilar desigualdades e garantir o sucesso para todos? 

Detenho-me e inquieto-me, porque não quero uma comunicação panfletária, mas apenas a tradução das práticas e das dimensões do cuidar como dimensão ética. Sintetizo o que faço e tento fazer, percorrendo as práticas e as minhas escritas sobre o seu sentido. Com muitas dificuldades, sempre. Com avanços e recuos, conquistas e desalentos, persistência e utopia.
Serei capaz de falar significativamente sobre o cuidar? 


"E vi-me a fazer paralelo entre o cuidar da infância e o cuidar da velhice, e como há tantas matérias que se intercetam e complementam nestas profissões do humano, e que se centram em competências emocionais e  interativas, fortemente ancoradas em atitudes de empatia, compreensão e humanidade.

Porque os homens e as mulheres que vimos, já foram crianças, já foram pais e mães, já foram profissionais. Cuidaram de outros, participaram na construção do seu tempo, deram de si ao mundo: corpo, emoção, razão, trabalho, riso, afeto. 
E porque as crianças necessitam também desta experiência, para se sentirem amadas e valorizadas, bem queridas. Para que possam construir, em concreto, esta aprendizagem, numa abordagem inequívoca de interação positiva e fortemente atenta aos outros, para bem cuidar e bem tratar, agora e no futuro.
Para que o mundo seja mais justo para todos, os que chegam ao mundo e os que dele se preparam para partir"  (8.2.2016, Cuidar bem)

"Por isso lutamos por ela como uma pele que nos cobre e no identifica. Em casa, na escola, com pequenos, grandes e médios... diriam os meus meninos se com eles estivesse a conversar. E diriam mais, porque sabem, apesar dos erros e das imperfeições, que é pela democracia e pela liberdade que nos batemos todos lá na sala. Não é um caminho fácil, mas é o único que a dignidade de cada um de exige.
Apesar de pequenos, os meninos sabem, porque vivem, que a participação é uma prática, por isso uma causa séria da vida da sala. Os meninos sabem que todos têm lugar e todos podem ser, através de palavras, ações, registos, discussões. Acertos e desacertos. Em cada dia, no final de semana, nos conselhos que realizamos, nas decisões que tomamos, nas escolhas que fazemos, tentamos dar corpo a este princípio e a esta prática. Com alegria, com choro, às vezes, com contenção, com surpresa, com resistência, com solidariedade. Construir o nosso lugar e o lugar dos outros para um bem comum, não é coisa fácil, mas é coisa boa.
As crianças aprendem que esta é a forma justa de viver em comunidade. Se as crianças podem e aprendem e se tornam mestres nesta arte, porque é que os adultos se diminuem e se omitem na condução dos seus destinos?" (24.1.2015, De pequenino se torce o destino

 

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Vê-los e ouvi-los

Fui vê-los. Na hora do intervalo quando o corpo pede corridas e brincadeiras malucas, com alegria e liberdade. 

Vieram a correr, a chamar o meu nome, entre risos, abraços e empurrões. Ia caindo ao portão, com a força dos meninos e meninas que foram para o 1º ano. Muitas conversas e informações, tudo ao molho e fé em Deus, que o tempo é curto e as saudades apertam... olha, já comecei a aprender coisas... olha o ...portou-se mal...olha vais cá ficar? não, não vou, vim visitar-vos e para ali ficámos, seguras do amor e das histórias que vivemos juntos, nos anos que passaram. As festas e conversas espalharam-se e eu a olhar em redor. O A. quieto a um canto, com as primas, sem se mexer. Fui ter com ele e dei-lhe um beijo e disse-lhe ao ouvido que o meu coração se lembrava dele quase todos os dias. Riu, em silêncio e encostou a cabeça ao meu peito. Um calor e um reconhecimento.

https://eitamocidade.files.wordpress.com/2015/05/crianc3a7a-de-colo.jpgDepois fui à sala do jardim de infância e eles lá estavam, meninos e meninas do ano passado e outros novos. Pararam as brincadeiras e deram abraços e vieram para o colo e riram, olhando-me com olhos de ver para além do que mostro. Uma procura atenta do que neles resta de mim, agora que começaram outro tempo e outro ano. Depois foram para as suas vidas, aquelas que estão a inventar na sala e que os grandes permitem e incentivam que as tenham. Andei para ali, sentando-me e levantando-me, sentindo a infância em redor, por palavras, gestos, emoções. Ainda pude cantar uma canção e falar baixinho, dizer segredos e outras coisas. E os olhos deles disseram quase tudo o que queria ouvir.

Depois vim-me embora. A pensar nas escolas, nas comunidades e nas culturas.  Naquilo que se vê e se intui. Naquilo que existe e no que falta. Na imensa alegria dos meninos e na imensa necessidade que têm de ser ouvidos e amados. E em nós, educadores como âncoras de uma aprendizagem que se quer justa, emancipatória, reconstrutora de identidades e circunstâncias.  Para que todos tenham vez e voz e o direito a uma cidadania plena, que começa aqui, pelo direito ao sucesso como pessoa e como aluno. Às vezes separamos uma coisa da outra e isso não é separável. Porque quem aprende é a pessoa que existe em cada menino e menina, com a sua história, o seu presente e as ideias que vai construindo de si para o futuro. E é para isto que servem as escolas e os educadores, para cuidar, ensinar e libertar gente de corpo inteiro, no agora e para os dias que hão-de vir.  

Com as saudades reconfortadas, foi isto (e mais outras coisas) que vim a pensar para casa. 

domingo, 9 de outubro de 2016

Outono...de novo a pedagogia

Sábado.
De manha bem cedinho comprou-se o jornal, acompanhado de um café quente, rotina mantida como gesto inaugural do fim de semana, cumprindo o direito a ficarmos sós connosco mesmo, numa espécie de liberdade boa que se junta à brisa e ao fresco do dia. É outono, pelo caminho muitas folhas no chão, cores quentes a invadir as ruas, os casacos leves a aconchegar os ombros. Uma promessa de recolhimento, de nos guardarmos nas vestes que nos vão tapar do frio e da chuva, que há-de chegar lá para o inverno. Mas por enquanto ainda não, que o sol é tépido e torna-se dourado nos finais de tardes.  

É outono. O tempo convida a passeios pelo parque da cidade, já não apanhamos folhas para a sala dos meninos, já não pensamos nas diferentes estratégias para provocar desafios de aprendizagem e envolvimento. Agora aos sábados, debruçamo-nos com atenção no planeamento das aulas, tentando acertar, com tempo e medida, nas melhores estratégias para desocultar o fazer e o sentido pedagógico da futura intervenção com as crianças.

https://s-media-cache-ak0.pinimg.com/originals/d1/7a/b1/d17ab160e181e09f8f9bc400c0b92d1c.jpgE de novo uma espécie de urgência invade o quotidiano, um querer tudo em pouco tempo, como se aprendizagem se pudesse revelar por aquilo que dizemos, ainda que suportado em exemplos e pela mobilização da prática. Como se aprendizagem não tivesse que ser ancorada na ação, em contextos concretos, refletida em cooperação com pares, para confronto da diversidade de princípios, perspetivas. Como se aprendizagem não fosse um processo longo, que para acontecer, em cada um, tem que fazer sentido para quem aprende.

De novo, neste outono, a pedagogia e as suas múltiplas configurações, na educação de infância. Neste novo local de aprendizagem, com gente crescida, quase as mesmas questões com que nos deparamos frente aos mais pequenos: como construímos uma comunidade de aprendizagem, numa escola que se quer democrática, com direitos e deveres? como instituímos processos de autonomia, partilha, participação? como desenvolvemos um currículo significativo, com sentido social e cultural, face ao tempo em que vivemos? Como incentivamos o gosto e o prazer por aprender?

De novo, neste outono, a renovação dos desafios para uma pedagogia com ética e compromisso face aos mais pequenos. Agora, através dos mais crescidos, futuros educadores. 

terça-feira, 4 de outubro de 2016

Faz-me falta

Já não escrevo há muito tempo. Falta-me o mote e os motivos, as falas, risos, perguntas e opiniões, feitos e fitas. Faltam-me. E como me faltam, no decorrer dos dias. 

Por isso, de alguma forma, perdi a inspiração. Movo-me menos inquietada e menos perguntadora, mais colada ao previsível, olhando o tempo e as tarefas como coisas a fazer, ainda o melhor que sei, é certo, mas sem a interpelação dos sentidos e dos saberes dos meninos pequenos, absolutamente grandes em interação e vida(s) partilhada(s).

Faz-me falta a construção colorida dos dias, esse permanente vai e vem entre descoberta, alegria, crescimento, encontro, ousadia. Essa espécie de luz primeira, brilho nos olhos, mãos descansadas nos nossos ombros, perguntas a confirmar os fazeres e a dedicação.

https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhswhyQ5eTerFc6vQi6Eh5RJTDNJwYpdHvawqKEB9SxW-T0HSS8314fJ8wlOAyXbpH06j9MQF1LIx10eom3C4OzyC6Yxa7Mhxs-Sau9YBPPgF3j9oDUG8DVaRWVekpu0J6dcF9sDl5hsfU/s1600/desenho+c%C3%B3pia+baixa.jpgFaz-me falta a revelação da pedagogia, feita de coisas singulares e muito concretas, pegamos nos pincéis e desatamos a pintar, um sol e uma flor, riscos e rabiscos e damos-lhe um nome e uma intenção, e nós a sorrir pela liberdade e pela construção da luz, do lado de dentro de cada um, no contexto da sala e dos afetos.

Fazem-me falta as conversas "ao redor da mesa grande", nem sempre simples e afáveis, mas sempre poderosas para a reconstrução da vida coletiva. Uma procura inacabada para o entendimento, para a conquista de cada um ser o melhor que pode, numa comunidade de aprendizagem.

Faz-me falta até o cansaço, o desassossego dos dias, as negociações e zangas, os problemas e as dificuldades para se ser de corpo e coração inteiros. Faz-me falta cuidar, apoiar e receber, um pouco de tudo o que os meninos e as meninas guardam e procuram dentro e fora de si. 
Faz-me falta ser sua companheira de aventuras e desavenças. Faz-me falta. 

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Fazer parte

Quando pertencemos ao lugar onde estamos? Quando olhamos e o que vemos, é também aquilo que sentimos e temos dificuldade em separar a pele da árvore, o colo do chão, os olhos do jardim? Quando é que por dentro já somos parte do que vemos por fora e tudo se conjuga numa amálgama de cores, risos, caminhos e projetos?

Quando é pertencemos ao lugar onde estamos? Quando é que o tornamos nosso e nele inscrevemos as nossas impressões digitais, aquelas que permitem tornar conhecido, amigável e desejável o que antes era apenas uma forma de arquitetura, mais ou menos bela, mais ou menos neutra? 

Quando é que as pessoas se tornam parte de nós, os risos são saudações de acolhimento, as falas uma espécie de cartão de identidade? Quando começámos a amar e a fazer parte? 

https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiM8J3dQUiv2FtEMWhft3_lkwoB-W_dfEG1S6sWgU_62grIJ1GBrxR4hJHk6-95Hphm3A4uq8hpenyLOqksCAxfqfrq3CVGsRJBtgA8hMmz6Ad0ddJGkSV03MXJ63jiEpovqJHacAAX10g/s1600/14-Si+no+hay+viento+habr%C3%A1+que+remar.JPGQuando é que deixamos de ser estrangeiros nos lugares que habitamos e nos tornamos gente no meio de gente, sabendo ler as sinas e as mágoas, os ditos e os silêncios, a alegria e a tristeza? Quando é que sabemos que tudo está certo, porque assim é que é, para além das dificuldades e deceções?

Quando é que a vida se põe de feição, mostrando que ali é o nosso lugar e que podemos escrever quase todas as histórias que os sonhos necessitam? Quando é que começamos a sentir que a vida se faz por aquele sitio e aquele sitio é o lugar mais certo para fazer a nossa vida e a de outros?  

Quando é que estamos no meio da nossa gente? Quando pertencemos ao lugar onde estamos? 

Carreguei ontem dentro de mim todas estas perguntas, quando me apresentei na ESE, lugar para onde vou dar aulas, durante este ano letivo. Carreguei-as de novo, hoje com mais intensidade e desconforto quando fui à minha sala e encontrei pela rua, a minha gente.

Assim me sinto, a despedir-me de um lugar onde fiz cama, colo e projeto, onde as histórias se desenharam com cores e traços de amor, para enfrentar a construção de um novo lugar. 

Mas tenho saudades do que foi e do que poderia voltar a ser, lá no meu lugar. E lembro-me do poema de Cecília Meireles...pois é! 

Ou isto ou aquilo
Ou se tem chuva e não se tem sol,
ou se tem sol e não se tem chuva!

Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!



Quem sobe nos ares não fica no chão,
quem fica no chão não sobe nos ares.

É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo nos dois lugares!

(...)
Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo.