As palavras têm andado arredadas de mim, dissipam-se com o calor, emigram para locais frescos, tornam-se estrangeiras no país do coração. Durante toda a semana as procurei ainda que de forma breve e pouco cuidada, Tentei ouvi-las, mas cansada do calor em tempo de trabalho, só o silêncio me permitiu construir equilíbrios. E lá andei, assim, durante toda a semana.
Hoje, domingo, um desejo enorme de as ver e ter em linhas, compostas e transparentes, a revelarem horizontes para lá do que se vê. Porque acordei e fiquei quieta na cama, a olhar o teto, com frases na cabeça, desordenadas e matreiras. Preparavam-se para a cilada que às vezes fazem: instalam-se sem pedir licença e monótonas, repetem-se, numa persistência cadenciada até que lhes dê ouvidos e guarida. Hoje, pela manhã, não lhes fiz a vontade e fintei-as, fui à rua ver o sol , apreciar o azul do céu, comprar o jornal e tomar o café. Deram-me descanso, num jogo de tréguas pouco comum. Mas foi sol de pouca dura, já cá estão outra vez. Vencida decidi fazer-lhes a vontade, sem ponta de azedume ou ressentimentos. Entrem e fiquem à vontade, tenho tempo.
Coloquei-me a preceito, écran em frente do rosto, ouvido atento, coração a jeito e o que ouço? o que ouvi quando acordei: "a felicidade é um lugar estranho...". E sorri. Lembrei-me vagamente de um titulo semelhante, avisei-as do perigo de plágio, mas elas continuaram indiferentes à minha chamada de atenção e repetiam " a felicidade é um lugar estranho...", "a felicidade é um lugar estranho...". Parecia-me estar no recreio da escola, quando em meninas fazíamos brincadeiras e repetíamos cantilenas, pelo prazer da cadência e da sonoridade.
"A felicidade é um lugar estranho..." Pois é, estranho e difícil, com muitas expressões e rostos, muitas reconfigurações ao longo da vida, muitos pesos, contas e medidas. Tantos quantas pessoas há no mundo, se calhar. Porque a felicidade se conjuga na primeira pessoa do singular, ainda que goste e necessite de plurais, esses que connosco estão, em diferentes espaços e latitudes, compondo a geografia dos afetos, ao longo dos dias e dos anos. Por isso ela é tão volátil, inconstante e intraduzivel.
Permanece como um desígnio para muitos de nós e atrapalha-nos a existência, porque se mascara de muitos rostos, momentos, oportunidades e escapes.Nem sempre a vemos, é esperta e disfarçada, vem às vezes em dias de claridade e alegria, ou em noites de lua cheia e fica durante muito tempo, no nosso corpo e nas casas que habitamos, porque gosta da serenidade que lhe oferecemos. Aparece, porque lhe garantimos a nossa parceria e o contributo para que se acomode e crie lugar. Às vezes foge de repente, amedronta-se com o cinzento que vislumbra em nós, sente frio e desaparece. E por mais que a procuremos, não há forma de a descobrir.
"A felicidade é um lugar estranho..." Sim, eu sei, vi-lhe os contornos, a figura, senti-lhe o cheiro e a presença em tantos dias da minha vida, tantos quantos os dias em que se ausentou, para surgir reforçada, depois de intempéries e tempestades medonhas, mas passageiras. Porque na vida tudo é transitório e a felicidade também.
"A felicidade é um lugar estranho..."? Pois é, tal como estranhos somos nós e a vida que construimos.
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