sábado, 21 de fevereiro de 2015

Amizade e partilha(s)

Precisamos de conversar. Dizer e falar da vida que nos acontece todos os dias para a tornar mais consciente e menos madrasta. Desfiar as contas do nosso rosário, proclamar as vitórias do nosso coração, amaciar medos e descobrir descansos. Descobrir descansos faz bem à alma e é urgente. Por isso fui ter com a minha amiga, sentei-me no sofá, ela serviu-me um colo e um sorriso, um chá de gengibre e canela, tempo e lugar no tempo dela.

http://modaetica.com.br/wp-content/uploads/2014/08/a20noiva20-2070x5020.jpgNão pedi licença para abrir a boca, desatei a falar, meninos e mais meninos, estratégias e sustos de quem tem medo de fazer mal, porque fazer bem é difícil e leva tempo. Sobretudo requer a presença de outros, equipas fortes e solidárias que entrem em ação quando o corpo fica trémulo e esgotado. Porque nos podemos esgotar no tanto que queremos fazer. Foi isso que disse e foi a promessa que fiz. Poupar-me um pouco mais, reservar-me na minha lida, intentar outros devaneios, procurar o mar, ler um bom livro, redescobrir a poesia no castanho forte dos olhos das crianças. E deixar de lado, em dias mais azuis, o trabalho curricular como preocupação permanentemente.

A minha amiga também falou, formatação pedagógica, liberdade e meninos de rua, danças e canções de roda, famílias e expectativas. Depois bebemos o chá e falámos também de outras coisas. Sempre da nossa vida, sem medo, porque a amizade é uma estrada larga, com muitos sentidos e sem sinais de proibição. 
 
 Depois vim para casa, mais leve e amparada. O amparo é fundamental para irmos sendo, em modo pessoa, que é o modo que temos de ser gente com os outros. Principalmente os amigos, aqueles que têm tempo para nos dar e fazem-no generosamente. A sorte que eu tenho por ter alguns ainda assim. Já são raros nos tempos que correm.



segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Construir o sentido do diário


Quem acompanha os meus escritos semanais, sabe que aqui pela sala, o bater é uma linguagem quotidiana, quase universal, muito popular e de utilização fácil. Difícil de controlar e suprimir, o bater resiste a todas as estratégias pensadas para o erradicar, histórias, conversas, dramatizações, zangas, falas mansas, outras falas. E reuniões de emergência, onde os adultos discursam, com tons de impotência e cansaço. Os meninos e as meninas olham e ouvem e dizem que sim, claro, temos que partilhar e não devemos bater, temos que ser amigos… recitando todas as coisas que queremos ouvir. Inteligentes e atentos, oferecem-nos o que integram em forma de reza ou tabuada aprendida de cor. Depois, a propósito de tudo e de nada, batem, empurram, choram, protestam. E nós desesperamos. Mas não desistimos. 

Por isso, colocámos no início do ano, o diário bem à vista e à mão de todos, pronto a receber em palavras as ideias e expressão de sentimentos, como forma de controlo da impetuosidade e oportunidade de registo para discussão futura, à sexta-feira. Grande e silencioso, ali esteve quase esquecido entre setembro e dezembro, com exceção para algumas das crianças mais velhas que nos pediam ajuda-me a escrever no diário. Os mais novos, de 4 e muitos de 3 anos, ignoravam-no, a não ser quando vinha para a mesa e era objeto de olhares rápidos, meio distraídos, por entre conversas com os meninos do lado, fugas para baixo da mesa, brincadeiras paralelas, outras impaciências difíceis de gerir. E braços no ar, com vontade de falar e opinar, ainda que sem dia, hora e lugar marcado, atropelando-se e atropelando os outros, numa alegria agitada para participar. De pouco valia dizer para discutir tem que estar escrito. Conheciam apenas o sentido de si e a urgência em tomar a palavra, experimentando-se como autores do seu quotidiano. 

1 E foi como autores (e atores) que começaram, há cerca de um mês, a fazer muitas escritas no diário, numa explosão desorganizada de letras e formas tipo letras, preenchendo todas as colunas, com traços destemidos e ideias precisas, traduzidas nas falas que nos devolviam quando os questionávamos o que escreveste? Olha, aqui… não gotei… o A. bateu a mim… foi, foi… Sem perderem tempo, às vezes em corridas para ver quem chega primeiro, os meninos e meninas, de 3 e 4 anos, pegam nas canetas, em liberdade e afirmação, para dizerem de sua justiça, escrevem e leem para nós o que escreveram, sem medo e sem consciência das convenções da escrita, numa liberdade anárquica, mostrando que já compreenderam que em vez de bater, vou escrever o que não gostei

Está a reduzir o bater na nossa sala, aumentam as escritas nas colunas do diário, com letras e formas tipo letras, pelos meninos e meninas mais novos, que descobriram o poder das palavras em vez do poder das mãos e da força no corpo dos amigos. Tudo está resolvido? Não, longe disso, temos ainda muito por resolver. Sem saber bem como. Olhamos para o diário e rimo-nos, tal é a expansão dos grafismos e dos sentimentos colocados por todo o lado, sem ordem e sem respeito pela função de cada coluna.

Mas esse é um trabalho posterior. Como será também o discutir o que está escrito, para ser colo e esteira das interações entre todos. Lembram-se pouco à sexta-feira, são tantos os registos e os testemunhos. Temos meia batalha ganha, faltam ainda muitas outras. 
Sejamos pacientes e persistentes no caminho da construção da democracia e da tolerância. E das convenções. Cada coisa a seu tempo, sem esquecer a idade das crianças, a(s) sua(s) realidade(s)

domingo, 8 de fevereiro de 2015

Meninos guerreiros

Deixamos de escrever e as palavras começam a fugir dentro de nós. Deixamos de escrever por muitas razões, saúde fragilizada, dias frios e mãos geladas, perplexidades assombradas que nos deixam de boca aberta e sorriso triste. Esforçamo-nos por continuar a acreditar na beleza e na liberdade de ser pessoa em relação com outros, mas o mundo obriga-nos a fazer silêncios contidos, para não gritar de espanto. Temos pudor de escancarar a porta e dizer que o rei vai nu. Mas vai.    

http://4.bp.blogspot.com/-6kUlLquSCjY/TzBcgDsZvtI/AAAAAAAAy3o/U9jhCfQmH7s/s640/Meninos.jpgTem estado frio, nos dias e no corpo, meu, da equipa e das crianças. Tentamos aquecer a sala com a nossa alegria, mas o tempo não está de feição para inverter a ordem das coisas. Porque a ordem das coisas é fria e crua, difícil e permanente. Os pés gelam, as mãos tremem, os casacos não chegam, os gorros escasseiam, o frio é muito. Corremos no recreio, brincamos ao lobo, o vento leva-nos as falas para longe, depois rimos e aquecemo-nos, juntos uns dos outros. Muito juntos, juntinhos. E assim vamos fazendo a pedagogia, que é uma forma de nos fazermos, uns com os outros, naquele sitio, onde desagua toda a nossa história. Tão pequenos e com tanta história. Ficamos estarrecidas com as conversas que têm, três anos e tanta vida, três ano e quatro e cinco e tanta informação.

Abrem a boca e desenrolam histórias, pegam em palavras e carregam-nas com sentidos, a propósito e a despropósito, que é outra forma de ter propósito e conseguir obter respostas. Estão cheios de dúvidas, porque os encheram do que não necessitam. Carregados de vida de adultos, feridos na sua intimidade de meninos e meninas a crescer, buscam em nós confirmações e descanso. Porque estão cansados do que sabem e não lhes faz falta. Por isso, intranquilizam-se vezes sem conta durante o dia, batem, pulam, demoram tempo a concentrar-se, não há calma para lidar com essa parte da vida, desvendada, sem cuidado. Não sabem o que fazer do que viram e ouviram. Estão suspensos de si, em modo de respiração alterada. Ás vezes para aguentar, riem-se nervosos, por tudo e por nada.

Continuam meninos e meninas, ainda que sonhem talvez um pouco menos, parece. Há pouco espaço para sonhar quando a cabeça está cheia de coisas difíceis. Tentamos não ceder a leituras breves e evitar zangas com o mundo que não cuida da infância. Já assim também viveram. Tentamos apoiar tudo o que há de positivo, responder ao que nos dizem, lutando para não ficar sem fala. Tentamos controlar falsos moralismos. Mas a vida é muito dura e estes meninos muito pequenos. São guerreiros do seu tempo e dos seus modos.

Podemos começar tudo de novo? vamos lá nascer e aprender a ser meninos e meninas em mundos mais suaves. E quentes. E feitos para a infância. Vá.

domingo, 25 de janeiro de 2015

Saber de cor

É domingo, o sol brilha e aquece tudo em redor. Saí cedo de casa e andei por aí, a sentir o frio doce da manhã e a pensar em ti, que nasceste há 29 anos e és o meu primeiro filho. Quis ficar sozinha, junto à beleza do tempo que faz, para melhor guardar em mim o teu nascimento, num sábado de manhã com chuva, o teu pai a dizer que não, vai agora nascer hoje, os amigos à espera da boa nova, a mala levada à pressa, numa alegria estremecida.  Foi há muito tempo e no entanto sei tudo de cor.  

Sei de cor os contornos da sala, a cor dos olhos da enfermeira, o rosto do médico que apenas chegou depois, não te viseste anunciar e dispensaste apoio especializado. Quiseste vir ao mundo de forma rápida e sem dor, o que me deixou atordoada, eu que alimentara o medo de longas horas de espera. 

https://lh6.googleusercontent.com/-uA2TqCKZ6Y0/SX861ibU99I/AAAAAAAAF3I/kA7KTDnSwbU/s290/Maternidade.jpgSei de cor a tua cara pequenina e o cheiro do teu corpo. Sei de cor o som da tua boca a pegar na mama, a tua mão em cima do meu peito, o calor do berço, a chupeta a dar voltas, o riso a crescer com das covinhas na cara. E as fraldas, o creme, os bonecos e a alegria.

Sei de cor a tua entrada na creche, o choro que nunca deixaste quando me vias partir, a foto que levavas dentro da mochila. Sei de cor a escola, os amigos escolhidos, as zangas contra a injustiça, não está certo, mãe, não é assim, numa fúria de seres quem és.  Sei de cor os anos de andebol, a tua garra como jogador, a tua atitude e a tua ética. Sei de cor as namoradas, a experimentação do amor, a alegria da paixão, a dor das despedidas. Sei de cor todos quantos te ajudaram a crescer.

Hoje, homem feito, sei de cor os teus sonhos e lutas, as tuas aspirações, a tua rebeldia, firmado num corpo e num coração grande e amoroso. Demasiadamente. Sei de cor a tua convicção, as tuas incertezas e a tuas resistências. 
Sei quase tudo de cor, porque andaste dentro da minha barriga e dela nasceste, lindo e encantador, para o mundo.Sei quase tudo de cor porque te levei vezes sem conta pela mão e juntos conversámos de tudo e de nada, em manhãs de café tomado e sol a aquecer-te o riso. 

Não sabendo de cor o futuro, estou aqui para tudo o que precisares, para sempre. Isso eu sei de cor. Amo-te meu filho. Parabéns.

domingo, 18 de janeiro de 2015

A roda do tempo

Chove com força e as gotas batem vigorosamente nas janelas, varridas por um vento frio. É de noite neste sábado chuvoso e ainda que sentada obedientemente em frente ao computador, vagueio por muitos lugares, um pouco à solta, desprendida do muito que tenho que fazer. Não me apetece, muito menos escrever o que tem que ser escrito, coisas da escola, do trabalho, da formação. Não. Hoje quero-me isenta de obrigações, para me encostar à liberdade do tempo, esse bem precioso e escasso. Não sei que volta lhe dar, foge-me sem vergonha, é descarado e pouco obediente, distraio-me um bocadinho e já não o tenho disponível, brinca da minha necessidade de o querer grande e preguiçoso, a andar devagar como o caracol. Mas ele nada, risse dos meus pedidos e lamentos, da minha nostalgia em noites como esta, depois de um dia em forma de sol. Porque foi. 

http://t2.uccdn.com/pt/images/5/8/1/img_13185_apa_10642_200.jpgDeram-me um bebé para cuidar, doce e risonho, forte nas interações, brincámos e cantámos juntos, eu com palavras e ele com sons e movimentos, de cá para lá, de lá para cá, correndo a sala e os objetos, rindo para os gatos e estendendo-lhes as mãos. Houve tempo para tudo, mudar a fralda, comer a sopa, dormir, brincar. E muitas conversas. E beijos e abraços.  Quando se foi, fiquei a pensar na vida e no tempo, na minha condição de amiga avó, parentesco herdado de uma amizade longa e profunda com a avó e a mãe. Conheci ambas há cerca de 30 anos, eu e a avó com 28 anos, a mãe, menina de 4 anos. E ligámo-nos pelas coisas da educação, troca de ideias e desabafos profissionais, num caminho que começou na relação professora aluna, mas que cresceu para além disso, misturámos famílias e sonhos, companheiros e filhos, vimos crescê-los e debatemo-nos com os seus caminhos e as suas escolhas, rimos e chorámos, ficámos amigas para sempre. Nesta relação, ensinei e aprendi muito. Sobretudo aprendi. Aprendi o valor e o sentido da amizade e da solidariedade sem preço e sem tempo contado, a alegria e o espanto de ser gente e amiga a qualquer hora e em qualquer lugar. Pela vida e para a vida.

Por isso hoje a menina que agora é mãe, deu-me o seu bebé e eu deliciei-me e surpreendi-me com ele. E enterneci-me com tanta beleza e inteligência, tanta relação e competência social neste bebé, que nasceu de uma menina que conheci há tantos anos. E pasmei pela roda da vida que nos leva de volta à infância quando o tempo já nos empurrou para longe da juventude. E vim ter ao tempo que corre e foge e se escapa. e de novo me quis jovem e com oportunidade(s) para recomeçar. Com o cheiro e a pele do bebé em mim, a saudade a trespassar-me no corpo, a alegria a brigar com a nostalgia.
Mas foi um sábado bom, mais que perfeito. Não me apetece fazer nada, hoje já fiz quase tudo.

sábado, 10 de janeiro de 2015

Ano novo, velhas questões

Já passou uma semana de trabalho. A semana a seguir à entrada de um novo ano, o que significa começar com novas expectativas e propósitos. Intencionalmente definidas, inconscientemente desejadas. Na pausa letiva, planeámos, refletimos em equipa, reorganizámos espaços, aprimorámos os instrumentos e lá começámos. 

E lá fomos, rindo e dando abraços, fazendo coroas e cantando as janeiras, escrevendo no diário, partilhando e...batendo, empurrando, chorando, protestando, fazendo queixas. Como sempre. No final da semana impacientei-me e zanguei-me. Á séria. E numa reunião de urgência (é porquê, Manela?) falei, falei e falei...o silêncio pairou no ar, junto com olhos de espanto. Os meus e dos deles, ainda que por motivos diferentes. 

Falei de mim e da minha dificuldade de os compreender, do meu gosto em ajudar a ter uma sala onde todos se entendessem, da minha recusa em andar permanentemente a gerir zangas e conflitos. Disse isto com palavras que saiam em catadupa, com a emoção à flor da pele, com a verdade de ser quem sou. Pedi que me explicassem, uma vez mais, porque se batiam e se empurravam, em vez de serem gentis e amorosos, como a história que tínhamos lido no dia anterior. As respostas vinham em conformidade com normas de moral decoradas, portamo-nos mal, não partilhamos, não devemos bater...mas quando direcionei, com gestos corporais e muita energia, a questão, o que é que vos acontece no corpo e no coração para baterem...alguns disseram ficamos com raiva...estamos irritados...não nos controlamos.
 
Estava dado o mote para continuar a conversar, agora reorientando as falas, minhas e deles, para a necessidade de crescer com mais calma, tolerância, sentido dos outros, amizade e alegria. Aos poucos os discursos ficaram mais suaves, descansámos todos por encontrar sugestões para os próximos dias, lemos uma história a pedido de alguns Diz-me como é ser grande. E falámos de afetos, de zanga de pais, da violência de alguns adultos, em apontamentos que ficam para nós, não se divulgam. O resto da tarde foi serena, respirávamos de alívio, julgo, por termos conversado sobre coisas que nos moem as ideias e o coração.

Andei em interação com eles, numa vagareza lenta como o caracol, com as palavras que tinha dito a ecoarem em mim, certa que enquanto falava para eles, falava também para a minha deceção, eu que investira em desejos de comportamentos novos, ingenuamente centrados nas minhas conceções de trabalho pedagógico e desenvolvimento do currículo. A acusar a dificuldade de como fazer, para além da utilização de instrumentos de regulação do grupo, dos conselhos para discussão da vida da sala, da leitura de histórias escolhidas a dedo para os problemas de relação, de conversas individuais com empatia, de colos dados todos os dias. E da afirmação regular que posso ajudar quando sentem que vem aí a raiva. E com uma inquietação leve de não saber se tanta emoção pode ter repercussões positivas nas crianças e no seu estar no grupo.

Vim para casa neste final de semana em balanço, mais uma vez. A interrogar-me sobre o significado e  a adaptação do currículo para cada grupo e para o meu, em particular. Com o sentimento incómodo que as estratégias que utilizo andam em contramão com a realidade familiar e comunitária dos meninos e meninas, reforçadas em práticas e conceções de olho por olho, dente por dente. Que a minha persistência em escritas sobre os problemas, no diário, são entendidas como fantasia pedagógica ou adorno engraçado de escolinha, porque tudo o resto, à nossa volta, se estrutura em função de normas e pedagogias autoritárias e pouco negociadas. Esse é o ar que se respira e nos enche, sem pedir licença, as práticas e a intervenção, num processo de osmose quase perfeito. Engole-me às vezes também, ainda que resista como posso.

Vim para casa a pensar se foi legítimo e terá alcance a minha emoção e zanga. Mas nada pude fazer conta isso. Para me aquietar relembro João dos Santos (1991) 

"A criança precisa de ser frustrada para sentir que não pode possuir tudo e para poder pensar em vez de fazer; de ser contrariada para sentir que há outros interesses para além dos seus; de sentir agressividade e também de a manifestar; de ter pais e educadores reais e não seres convencionais, frios e dogmáticos, daqueles que fazem educação pelo manual. Precisa de desobedecer para aprender o que é a desobediência; precisa de fazer experiências dolorosas para aprender a conhecer e compreender a dor; a criança precisa de ser educada com verdade".

Vou reler o livro "A escola faz-se com pessoas" de Pascal Paulus. Já li há uns anos e ajudou-me nestas matérias. Preciso de voltar a pensar nelas. Pelas minhas crianças e por mim.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Saudade

1 de janeiro de 2015
O dia já amanheceu e já fui ver a rua. Um frio que gela, um céu azul lindo, um sol forte, aberto, que aquece a paisagem. Tudo em silêncio, porque a madrugada foi longa e o sono ainda está demorado no corpo de quem dorme.
Lembro-me de ti e de como me fazes falta. Por tantas coisas, a menor das quais seria agora  preparar o perú para o almoço. As outras, não se dizem, faltam as palavras para retratar o alcance do amor de mãe. Um continente de afetos e regaços, uma lonjura grande como o mar, uma condição de futuro sem quebra e sem resgaste.

Fazes-me falta, hoje, 1º dia de 2015 e assim tem sido desde que partiste. Começar o ano sem o dizer, não é possivel nem seria seria justo para o meu coração e a minha saudade.

http://www.jokerartgallery.com/pintura/edmilsoncosta/m%E3e%20e%20filho%20dormem-osm-79x100cm2006.jpg 
Aqui fica pelas palavras de Almada Negreiros

Mãe!

Vem ouvir a minha cabeça a contar histórias ricas que ainda não viajei!
Traze tinta encarnada para escrever estas coisas!
Tinta cor de sangue, sangue verdadeiro, encarnado!

Mãe, passa a tua mão pela minha cabeça!

Eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça não se lembra de viagens!
Eu vou viajar. Tenho sede! Eu prometo saber viajar.

Quando viajar é para subir os degraus da tua casa, um por um.
Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa. Depois venho sentar-me ao teu lado.
Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu viajei,
Tão parecias com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas palavras.

Mãe! Ata as tuas mãos às minhas e dá um nó-cego muito apertado!
Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa. Como a mesa.
Eu também quero ter um feitio que sirva exactamente para a nossa casa, como a mesa.

Mãe, passa a tua mão pela minha cabeça!

Quando passas a tua mão pela minha cabeça é tudo tão verdade!

José de Almada Negreiros, a invenção do dia claro