segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Construir o sentido do diário


Quem acompanha os meus escritos semanais, sabe que aqui pela sala, o bater é uma linguagem quotidiana, quase universal, muito popular e de utilização fácil. Difícil de controlar e suprimir, o bater resiste a todas as estratégias pensadas para o erradicar, histórias, conversas, dramatizações, zangas, falas mansas, outras falas. E reuniões de emergência, onde os adultos discursam, com tons de impotência e cansaço. Os meninos e as meninas olham e ouvem e dizem que sim, claro, temos que partilhar e não devemos bater, temos que ser amigos… recitando todas as coisas que queremos ouvir. Inteligentes e atentos, oferecem-nos o que integram em forma de reza ou tabuada aprendida de cor. Depois, a propósito de tudo e de nada, batem, empurram, choram, protestam. E nós desesperamos. Mas não desistimos. 

Por isso, colocámos no início do ano, o diário bem à vista e à mão de todos, pronto a receber em palavras as ideias e expressão de sentimentos, como forma de controlo da impetuosidade e oportunidade de registo para discussão futura, à sexta-feira. Grande e silencioso, ali esteve quase esquecido entre setembro e dezembro, com exceção para algumas das crianças mais velhas que nos pediam ajuda-me a escrever no diário. Os mais novos, de 4 e muitos de 3 anos, ignoravam-no, a não ser quando vinha para a mesa e era objeto de olhares rápidos, meio distraídos, por entre conversas com os meninos do lado, fugas para baixo da mesa, brincadeiras paralelas, outras impaciências difíceis de gerir. E braços no ar, com vontade de falar e opinar, ainda que sem dia, hora e lugar marcado, atropelando-se e atropelando os outros, numa alegria agitada para participar. De pouco valia dizer para discutir tem que estar escrito. Conheciam apenas o sentido de si e a urgência em tomar a palavra, experimentando-se como autores do seu quotidiano. 

1 E foi como autores (e atores) que começaram, há cerca de um mês, a fazer muitas escritas no diário, numa explosão desorganizada de letras e formas tipo letras, preenchendo todas as colunas, com traços destemidos e ideias precisas, traduzidas nas falas que nos devolviam quando os questionávamos o que escreveste? Olha, aqui… não gotei… o A. bateu a mim… foi, foi… Sem perderem tempo, às vezes em corridas para ver quem chega primeiro, os meninos e meninas, de 3 e 4 anos, pegam nas canetas, em liberdade e afirmação, para dizerem de sua justiça, escrevem e leem para nós o que escreveram, sem medo e sem consciência das convenções da escrita, numa liberdade anárquica, mostrando que já compreenderam que em vez de bater, vou escrever o que não gostei

Está a reduzir o bater na nossa sala, aumentam as escritas nas colunas do diário, com letras e formas tipo letras, pelos meninos e meninas mais novos, que descobriram o poder das palavras em vez do poder das mãos e da força no corpo dos amigos. Tudo está resolvido? Não, longe disso, temos ainda muito por resolver. Sem saber bem como. Olhamos para o diário e rimo-nos, tal é a expansão dos grafismos e dos sentimentos colocados por todo o lado, sem ordem e sem respeito pela função de cada coluna.

Mas esse é um trabalho posterior. Como será também o discutir o que está escrito, para ser colo e esteira das interações entre todos. Lembram-se pouco à sexta-feira, são tantos os registos e os testemunhos. Temos meia batalha ganha, faltam ainda muitas outras. 
Sejamos pacientes e persistentes no caminho da construção da democracia e da tolerância. E das convenções. Cada coisa a seu tempo, sem esquecer a idade das crianças, a(s) sua(s) realidade(s)

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