Domingo de chuva.
Aqui da janela do sótão, as gotas fazem um barulho manso no telhado, deslizam pelos vidros e sobre as árvores, juntam-se em fios de água, ensopam a areia dos caminhos, lavam as pedras da calçada. Fica tudo fresco e limpo e apesar do cinzento do céu, uma luz doce invade o dia. Parece um choro brando.
Acordei com saudades. Dessas que teimam em se disfarçar de outras coisas, corpo dorido e sono a persistir, gestos lentos e vagos, imagens a inundarem o coração, para além da manha que já vai alta e pede a celebração da rotina. Uma rotina boa, em jeito de ritual, porque é domingo, os rapazes vão chegar para o almoço entre abraços e preguiça.
Mas acordei com saudades, daquelas que nos comprimem as palavras e dão primazia ao silêncio.
Saudades do passado, menina com vestido novo no largo da igreja, depois da missa, o cheiro das regueifas, das mimosas, os bons dias entre os vizinhos, pequenas conversas e risos, a minha avó a dar-me a mão, os tremoços e o arroz doce na mesa, em jeito de agradecimento ao senhor. Por estarmos vivos, por ser quem somos, por o futuro se ancorar numa estranha fé na vida. Por tudo ter um lugar e o lugar ter quase tudo.
E acordei com saudades. De ser cuidada e protegida de tomar a dianteira, de ser poupada a ter sempre a lanterna pronta para iluminar o caminho, a mim e aos meus, sem desistir. De não ter que fazer perguntas e construir as respostas, de não andar continuamente a esculpir o tempo, perscrutando os seus desígnios e sentidos, os seus alcances e mistérios. Porque cansa. E ainda cansa mais em tempo de invernia.
Acordei com saudades. De me deitar na eira, em dias de sol, aninhada e contente, a minha avó a escolher feijões e a explicar-me o sentido da vida e de ser mulher. Com precaução e verdade. E eu a acreditar, pelo seu tom de voz, as suas palavras sábias e a sua assertividade, capaz de afastar maus olhados e tempestades frias. Em tempo de primavera.
Deve ter sido por isso que acordei com saudades. Do tempo quente e do amor, incondicional e protetor. Um amparo para a alma. Um descanso para o corpo e para a lonjura do futuro.
Que bonito, Manuela! Escreve mais que a gente gosta de (te) ler. Um beijinho para ajudar ao aconchego
ResponderEliminarobrigada Cristina. Bom domingo e muitos aconchegos! doces...
Eliminar"Saudades e afetos" teus, que nos fazem relembrar os nossos por estarem tão bem descritos. Obrigada.
ResponderEliminarpois é Teresa, os nossos afetos e as nossa saudades...
EliminarAdorei. E viajei pela minha infância, a minha avó igual, noutro lugar, noutros costumes, mas tão igual. Saudades.....
ResponderEliminarSaudades...também as sinto! Vai um cafezinho? Abraço
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