quarta-feira, 1 de abril de 2015

Corpo e memória

Olho para as fotografias que decoram esta pequena sala, transformada em espaço de trabalho e aconchego-me nelas. Quase todas a preto e branco devolvem-me a infância e a juventude, riso aberto e ar confiante, assim estava eu em alguns dias, nesse tempo. Percorro os detalhes e as lembranças. Afasto algumas, não quero entardecer de nostalgia. Porque o fim de tarde está a chegar, o sol vai ficar alaranjado quase em cima da ria e vou querer reter essa imagem dentro de mim, serenamente. O que me espanta na vida é como conseguimos guardar tanta memória no nosso corpo e como ele é um roteiro condensado do que fizemos e vivemos, amores, projetos, paisagens e vestígios, intentos, duvidas, causas, filhos, pais, mães. Amigos e companheiros. Tudo em nós, no nosso corpo, dentro deste limite material de que somos feitos. E depois num lugar que não se vê, mas que está cá. Coração? Alma? Espirito? 

Vejo a mulher idosa a passar na rua, corpo dobrado pelo peso da idade, pequena e no entanto sei que guarda dentro dela quilómetros de vida, enrolados em lembranças e esquecimentos, tudo lá por dentro, tanto, tanto e contudo o seu corpo é pequeno e frágil. Mas chega para acolher as memórias mais recuadas da infância e juventude, quando partia para o campo para desfolhar as espigas e vinha no carro dos bois, ou quando ia à feira vender batatas e feijão, em cestos de vime, colocados uns ao lado de outros, que nem montra de produtos biológicos. Naquele tempo não se dizia assim, estas palavras não se tinham comercializado, vendia-se o que era cultivado, para depois poder comprar pão, vinho e peixe. 

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No meu corpo guardo também as idas à praça com a minha avó, que fazia desse ato o seu gesto de liberdade e autonomia. Contra a opinião dos filhos, apanhava-me nas férias grandes e seduzia-me para esta rotina, inventando uma horta pedagógica, desculpando-se com a pequena, faz-lhe bem aprender e entreter-se, é por isso... Os filhos calavam-se e nós levantávamo-nos cedo e lá íamos as duas, nabiças e feijão-verde que cresciam por cuidados das suas mãos. No fim da venda, comprávamos bananas e padas, quentes e macias, e quando chegávamos a casa o pequeno almoço sabia pela vida. Pela vida e pela liberdade. A venda da minha avó, teima que manteve até muito tarde, para ser autónoma e depender apenas dela. Um regalo para os olhos, uma lembrança permanente da força de algumas mulheres.

Guardo tudo no meu corpo e nos meus sonhos e agora que a Páscoa está a chegar, guardo as amêndoas na sala do Senhor e a visita do padre. E a alegria do dia e o toque dos sinos, em forma de aleluia. E o sabor das regueifas que os padrinhos nos davam, depois de pedir a sua bênção.

Sinto o cheiro, sinto a alegria, sinto as imagens. Não sei como traduzir, mas sei que estão inscritas no corpo e nos seus sentidos. Tudo cá dentro, tanta vida e tanto andar e tanto tudo.
Por isso me emociono e me surpreendo com o que guardamos em nós, no nosso corpo. Um guardião de memórias, uma esteira de caminhos, um espaço de identidade e reserva de futuro.

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