sábado, 22 de fevereiro de 2025

Mais um sábado pedagógico: há dias assim...


Há dias em que tudo se compõe dentro de nós, numa espécie de esteira quase perfeita, dando sentido e chão às ideias, palavras e sentimentos que andámos a nutrir anos sem conta. Escancaram-se as portas e ainda que nem tudo seja novo, o que surge aos nossos olhos, é claro, bonito e justo. Tem sentido de ser, tem ética e estética.

Hoje foi um desses dias. Sentada numa sala para ouvir e pensar a pedagogia, fiquei de frente com a beleza, a alegria, o espanto. Vi árvores da liberdade esculpidas pelas mãos de crianças, registos de luz e sombra, textos e ideias, arte(s) e projetos, que se alongam para lá das paredes, construindo lugar na rua, convidando os de fora a ficarem por dentro. A olhar e a compreender a riqueza do pensamento e da ação de crianças e adultos. Sobretudo a ideia que a inclusão é uma condição possivel e necessária para a nossa vida em comum. Que a democracia e solidariedade tem rosto(s), nome(s), estratégias para a sua construção. 

 Pola 5 anos

Mas vi e ouvi mais. Pequenas (grandes) histórias de profissionais que agarrando o essencial, procuram inscrever o que fazem num ambiente de escuta, respeito, atenção. Histórias quase banais, pequenos apontamentos, intensos e desafiadores, exigindo a humildade de saber que, face a algumas vidas, é preciso agir com cautela,  sensibilidade e sobretudo confiança. As crianças, dão-nos, tantas vezes, a solução certa e apaziguadora para os nossos receios. Ouçamo-las com seriedade.  

Foi tudo assim tão novo? Não, foi tudo assim tão bonito e cuidado, numa interação amorosa de pensar minuciosamente a ação, levá-la a bom porto, em cooperação, resgatando a reconstrução da cultura como legado para o currículo e a vida na escola. 

E fiquei a pensar que é urgente que possamos celebrar as nossas práticas, divulgar o que fazemos a outros, negar o estatuto de minoridade, conceder às crianças o lugar a que têm direito, concedendo-nos também a nós um lugar ao sol, ou como hoje se disse, procurar mais a luz que a sombra. 

E fiquei a pensar em todos os profissionais que trabalham com crianças, e como isso é dificil, desafiador, inquieto, mas também deslumbrante e inovador. E lembrei-me das creches, dos meninos e meninas tão pequenos, do cansaço, dos cuidados, do amor, da invisibilidade da sua ação, da perceção da sua função como apenas cuidadores, sem saber que cuidar exige, entre outras coisas, atenção, envolvimento, responsividade, competência, preocupação, conhecimento, ética. Tanto, não é? Quem é capaz? 

Lembrei-me de tudo nesta manhã de mais um sábado pedagógico.  Obrigada às colegas pela sabedoria, pelo encanto, pela atenção e pelo cuidado com que fazem acontecer os dias nas suas salas, de braço dado com as crianças, as famílias e a comunidade. Respeitando-as, escutando-as e incluindo-as. 

Quando é assim tudo se compõe dentro de nós. 

quarta-feira, 27 de março de 2024

Saudade (s), de novo.

De novo te recordo e te escrevo, neste dia em que farias anos, se estivesses aqui. De novo te convoco, discreta e viva, para me aquietares de uma leve tristeza e nostalgia, difusa, mas ainda assim presente em alguns dias. Hoje, sobretudo.  

O dia está chuvoso, com frio e vento, cinzento e molhado. Dia de ficarmos pela sala, entre o sofá e a cozinha, a preparar o almoço e certamente coladas à televisão, a ver a assembleia da república e as sucessivas votações. Teríamos conversa animada pela certa, com as tuas perguntas, opiniões e espantos. Eras assim, interessada pela política e pela vida do país, e eu apreciava essa qualidade, tanto mais que a vida não te deu, à partida, condição suficiente para construíres um olhar critico sobre o mundo e as suas múltiplas realidades. Mas tu soubeste construí-lo, em parte pela tua sensibilidade e inteligência, em parte pela socialização que foste fazendo com os filhos e por uma curiosidade quase inata, quase infantil, que nunca perdeste. Recusavas as novelas, os filmes lamechas, as histórias de cordel...mudavas de canal com impaciência e procuravas a informação.  E eu gostava desta nossa cumplicidade em torno do que acontecia e nos estarrecia. 

desenho da M.R.

Tenho saudade da tua companhia, do teu amor discreto, sempre presente e incondicional. Tenho saudades de ser filha, a tua filha, eu que me tornei mãe e recentemente avó. Tenho saudades de te falar da Júlia, a filha do teu neto Miguel, que cresce todos os dias inundada por amor, cuidado, alegria e paixão. Fazes cá falta. 

Queria contar-te como é ser o que também foste e em desabafos cúmplices, partilharmos as aventuras e desventuras da nossa condição de mulheres maduras (chamam-nos assim, agora, vê só...), que desfiam o rosário dos dias, entre convicções e atropelos de novas ideologias e  modos de viver.  E com a Júlia e a propósito dela, havíamos de ir        buscar as nossas infâncias, quando te fui ver ao hospital com 5 anos, perdida de medo de te perder; quando me cortaste o cabelo, com "marrafa" e eu odiei, quando fritavas o peixe e eu e o meu irmão subíamos para o banco para te dar beijos e tu a fugir, com o riso contente.  E falaríamos também da minha avó, da sua força de mulher independente, da sua garra e da sua companhia e proteção. E da eira e do quintal, e do milho, e das ameixas boas, e do poço, e das regas, e das uvas e do lagar. E dos braços da ria. E da liberdade de correr pelos campos. 

E eu ficaria bem feliz e tu também e ninguém nos tiraria a lonjura de sermos mãe e filha com filhos e netos e neta. Não seria mesmo bom? 

Tenho saudades, mãe. Principalmente de ser filha. Sabes, mãe, cansa ser mãe e avó e não ter um colo à mão de semear, nos dias em que a chuva parece arrastar uma tristeza delicada para o coração. 


quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Para a Júlia

A minha neta Júlia já nasceu. Tem 22 dias. Sempre que nasce um bebé das minhas pessoas, escrevo um texto, porque me inunda uma espécie de renovação de esperança e fé, misturada com alegria e espanto. Olho para esses bebés e as palavras soltam-se embriagadas, poderosas, a anunciar promessas e a desejar sorte e amor. Com a Júlia não foi assim, de imediato. 


Dei-lhe colo, na maternidade, com jeito e parcimónia, entre o silêncio, o espanto e a alegria. O meu corpo aqueceu, o coração ficou maior e as palavras, essas, esgotaram-se. Nem de perto, nem de longe, fui capaz, nos primeiros dias, de lhes dar forma. Obedeci. 

Depois esperei-a em casa e comecei de mansinho a apreciar o seu envolvimento com a vida, os pais em primeiro lugar, com os beijos, os abraços, os colos ternos, o cuidado, o amor desmedido e provado, durante nove meses e sonhos antes acalentados. Depois a luz, os sons, as falas, o calor, o riso, o frio, o aconchego, numa dança do quotidiano, que ela vai sentindo e integrando no seu corpo, que é desde já, emoção, interação e apego. 

Olha-nos com uma atenção focada, escuta e responde, em gestos de bem estar ou desconforto, confirmando a sua competência para ser com os outros, aqueles pelos quais vai experimentar bem estar, segurança e confiança para olhar e conviver com o mundo. E isso será o seu passaporte para a vida, o seu legado primeiro e fundador. 
desenho da Maria Rita 

 Canto-lhe canções quando a tenho ao colo e espanto-me com o seu corpo e a sua pessoa. Apesar de muito dependente, ela aí está, impondo os seus ritmos na nossa vida, entre fraldas, leite doce da mãe, banhos quentes, carícias e conversas de um pai sempre presente. 

 E eu fico alegre e expectante, porque a vida se faz pela mão e pelo corpo das nossas figuras de referência, a mãe e o pai, e pelo envolvimento de uma família e amigos que saibam acolher, mimar, entender, confortar, orientar e propor. E refutar. Porque a educação se faz por propósitos, sonhos e convicções para suster e apoiar um projeto de vida. De que a Júlia será a autora, a meias com aqueles que lhes deram o chão e o céu, numa comunidade de afetos. 

Olho para ela e penso que tem tudo para ser feliz. Que assim seja, com saúde, amor, alegria e liberdade. E fraternidade e lucidez. Para isso precisamos de continuar todos por aqui, principalmente os pais, guardiões do amor, que por agora, se faz pelo corpo e com o corpo, lugar de começo da vida. 

Longa vida, Júlia, justa, atenta, solidária, fraterna. E muita sorte, minha querida. Porque também é preciso e necessário. Tu verás. 

E conta sempre comigo para tudo, principalmente contar histórias, ir ao parque, correr atras das borboletas, cantar canções e inventar brincadeiras e alegrias boas. E conversar muito. Boa??? 

 Beijos da avó Nela

segunda-feira, 27 de março de 2023

Saudade e cheiro(s)

Farias hoje anos, se cá estivesses. Muitos, mas nunca os suficientes ou de sobra para a nossa saudade. Gostava tanto de voltar a ver o teu sorriso, meio tímido e disfarçado, mas cheio de alegria, sempre que olhavas para nós.  Gostava que te sentasses de novo na cozinha, a beber o café com leite e a sacudir as migalhas do pão, para que tudo ficasse limpo e arrumado. E a levantar as cortinas da janela, a olhar para a rua, na procura inconfessada  de um braço de ria ou de um milheiral sacudido pelo vento. Porque gostavas de estar na nossa casa, mas tinhas saudades da tua.

E são saudades que hoje sinto, espalhadas pelo peito, meio tristes, meio conformadas. Saudades e cheiros. Da canela que punhas na aletria; dos grelos a cozerem na panela para acompanharem o bacalhau; da tua bata que vestias pela manha, um hábito que te ficou, de mulher de trabalho. Sinto saudades do cheiro do teu quarto, da tua agenda azul, da tua roupa e dos santinhos que guardavas junto a fotografias em envelopes. E das tuas mãos no terço. Sinto saudades da tua intimidade. 

E sinto saudades de me ouvires. Eu falava-te da minha vida, do trabalho, de projetos, dos nossos rapazes, de notícias (políticas, que gostavas) e do estado do mundo, e tu dialogavas, quase sempre com perguntas, indicadores inteligentes das tuas ideias e expectativas. E refutavas claro, sobretudo a minha ocupação como educadora, que dizias ser excessiva em horas diárias e preocupação a mais. Mas sei que te orgulhavas de mim. Tenho saudades desse orgulho e aprovação.

Mãe, agora já estou reformada e tenho muita pena que não me possas ver assim. Com tempo para arrumar as gavetas, olhar o céu azul e ler. Sei que irias de bom agrado para o sótão ajudar a arrumar os livros e pedaços da nossa vida que estão por lá, entre estantes, gavetas, fotos antigas e atuais. E havíamos de rir do ar dos rapazes em bebés, de ti nova e de mim, ainda menina. E conversaríamos sobre o corte de cabelo de então, com cheiro e tudo. E seria bom. E seria intimo. 

E cansadas de tanta arrumação, haveríamos de ir tomar café e ver os patos ao parque da paz. 

Tenho muitas saudades disso, mãe.


quarta-feira, 1 de março de 2023

(Re)tomar o caminho

Ontem à noite, foi uma noite boa. Ainda que de longe e em modo zoom, ouvi, pensei e aderi. Aderi por acreditar, por sentir, por saber que é mesmo assim que tem que ser. Nós, enquanto educadores e adultos responsáveis por grupos de crianças pequenas, sermos capazes de desenvolver "relacionamentos atenciosos, atitudes carinhosas, experiências positivas". Na conversa fluída e vagarosa a professora Teresa de Brito, desfiou ideias e histórias, perguntas e apelos, certezas e dúvidas, agitando as nossas convicções e práticas pedagógicas. Bebi sofregamente todas as ideias. Registo (apenas) algumas:

- Os adultos são capazes de pensar e refletir. Para isso é preciso parar, conseguir um "vagar interno", "procurar os sentidos para a nossa vida", observar as crianças, dar signficado aos seus comportamentos; 

- Na ação com as crianças, devo reconhecer e celebrar a singularidade e a individualidade. A importância de contemplar o ritmo de cada criança e de o respeitar. Para isso tenho de ter tempo e dar tempo. A nós e às crianças; 

- Falo bem a linguagem do desenvolvimento? O que é mesmo fundamental? O que para mim é inegociável?  Que autores e perspetivas me guiam e iluminam? Para que quero o conhecimento? Como o utilizo e amplio com as crianças?

- As crianças mais pequenas ensinam-nos a inclusão de uma forma extraordinária. Sejamos capazes de observar e dar signficado, sem pressa. Aprendamos com elas a empatia, o altruísmo; 

- Nós..."Somos nós e a nossa circunstância". É preciso compreender os ambientes que envolvem e condicionam as crianças. Antes de julgar as famílias, importa que saibamos olhar com sensibilidade, compreender a diversidade da(s) vida(s) e reconhecer que em muitos lugares (e lares) não há tempo livre, nem tempo para parar;  

- A avaliaçao faz parte da nossa vida. Os educadores fazem parte da avaliação, com a criança e a família. É um processo cooperado, que necessita de ser descrito e partilhado com uma linguagem sensível e positiva. O que cada um trás para a relação? O que é melhor para todos?  O que é preciso para viver hoje? 

A professora Ana Teresa falou de muitas outras coisas, de uma forma bonita, muito profunda e delicada. Da ética, da responsabilidade, do brincar (um direito, o 31º da CDC), da participação da criança, como garante da sua pertença ao mundo e condição de ser pessoa. E deu-nos sempre o enquadramento e a sustentação teórica para que possamos responder postitivamente à pergunta: "Falo bem a linguagem do desenvolvimento?"  

E eu que andava (e ando) meia cismada, a sentir-me seca de palavras e em silêncio, encantei-me e confirmei o desejo de continuar a aprender e a escrever. Um alerta para renovar este novo tempo que agora habito, em que me falta a "matéria prima", as crianças, com as suas falas, alegrias, desenhos, brincadeiras, choros, movimento, barulho. Para poder com elas e sobre elas pensar, apreciar e discorrer sobre a profissão. Um "vício" e uma paixão, alimentada e mantida durante muitos anos. Podemos continuar? 

Obrigada, professora Teresa.  



quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Com bata?


 

 

 

 

 


 

 

 

 

 

Estavam todos sentados à espera que a festa começasse,  e eu aproximei-me, contente de os ver, com as fitas na cabeça, direitinhos e curiosos, entre a música de natal, o barulho das vozes e a azáfama dos adultos.  Alguns abraços vieram rápidos, outros ficaram recolhidos, que a compreensão da minha ausência ainda não era nem clara nem certa.

Aproximei-me dela, e fiquei sentada ao seu lado, perguntando se estava tudo bem. Respondeu que sim e remeteu-se ao silêncio, num comportamento pouco habitual. Depois começou a brincar com a amiga do lado rindo.                                                           

- A tua mãe vem amanha ao lanche?, perguntei-lhe

- Vem!? disse ela, pensando que eu estava a fazer uma afirmação.

- Não estou a dizer que vem, estou a perguntar se tu sabes se a tua mãe vem. Eu venho.

Olhou para mim muito séria e disse repentinamente

 - Com bata?

Sorri, dei-lhe um abraço e disse: 

- Não, sem bata, eu agora já não vou vestir bata, na sala, porque já não vou trabalhar mais com os meninos e as meninas. Já tínhamos conversado sobre isso, lembras-te?  Mas venho visitar-vos, de vez em quando vez em quanto.

E fiquei a pensar na pergunta e na bata, surpreendida pela forma como foi dita, com rapidez,  como se já fosse pensada há algum tempo. Pensei na bata e no seu valor e função, para nós e para as crianças. Nas histórias que as batas contam e fazem no quotidiano da sala, naquilo que podem transmitir, propor, construir. Uma bata? sim, uma bata, não pelo seu corte, estética, cor, mas porque assumem o cobrem o corpo de uma pessoa que se torna referência, que ao vesti-la, pela manhã, está pronta para ir brincar, planear, ouvir, desafiar, dar colo...também zangar-se, às vezes...mas sobretudo, fazer acontecer o dia com as crianças e a equipa. A bata como requisito de permanecer, de ficar, de continuar.

Se se pode ser educadora sem bata? julgo que sim. No caso que agora conto, não. Porque vestir a bata, pela manhã era uma rotina boa para mim, uma alegria e um conforto. Um ritual, a anteceder a chegada das crianças e o início do dia. Um início bom, a promessa de estarmos juntos e sermos um grupo e uma comunidade a aprender.

Pelos vistos e ainda que não exatamente nestes termos, para a F. também. "Tu vens, mas é com bata? 

                                                                                                                                      foto j.i Trafaria