sábado, 23 de setembro de 2017

Outono, ainda assim.

Desengonçada e sem prumo, assim se sentia nesse amanhecer, cheio de silêncio e sons, com vogais e consoantes inaudíveis. Dispersa, transparente, gota de água trémula e frágil, no meio de um monte de folhas secas. Desengonçada, sem unidade para sorrir, inteira e plena.  

Uma parte ausente. Talvez a mais relevante, fora de si e da terra cultivada dos sonhos. Uma dor melancólica, um frio ligeiro, persistente, com ecos de saudade, compostos pela atenção vigilante dos sentidos. Um foco de luz sobre imagens debotadas.  

gercken AUTUMN OIL PAINTING commissioned fall by GerckenGallery, $158.00Uma parte ausente e outra presente, sem tréguas à vista. O correr dos dias, a força do real, as redes quebradas para apanhar boas novas, com gosto a maresia. O tempo, o duro peso do relógio, caminhos estreitos para andar, rotas inevitáveis e constantes. O tem que ser. E se não for?

Desengonçada, entre  reter e largar. Abandonar-se aos sons infindáveis da alegria, do recomeço com história, da afirmação possível do amor. Redefini-lo  no chão largo do outono, misturar folhas e restos de sol, conhecer os mistérios do tempo, permitir a captação da luz, na infindável renovação da natureza. Acompanhar as suas transformações. Ano após ano e agora também. Sentir que de novo será e por isso, atentar, contra a repetição dos dias.

Desengonçada, num equilíbrio instável e à mercê. Sacudir esta predestinação, equacionar outros fins e meios. Não desistir de ser, reunir com afinco bocados belos de folhas quentes, pedaços de cores mescladas de castanho e dourado. Apreciar o poente, reunir de novo a poesia, adormecer com as palavras ao colo. Aproveitar o tempero do outono para acolher memórias e procurar futuros. Amenamente, mas com fio de prumo.


Quando, Lídia, vier o nosso outono 
com o inverno que há nele, reservemos
um pensamento, não para a futura 
primavera, que é de outrem,
nem para o estio de quem somos mortos,
senão para o que fica do que passa 
o amarelo atual que as folhas vivem
e que as torna diferentes

Fernando Pessoa/Ricardo Reis "Odes"

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