domingo, 7 de dezembro de 2014

Falar e pensar(se)

Andou quase toda a semana em reboliço, inquieta, de espaço em espaço, iniciando atividades sem as terminar, mexendo e tirando objetos dos espaços, conflituando com amigas, interrompendo as conversas, chorando ou protestando. Na quinta-feira, entornou um bocado de leite na mesa e quando vi, misturava tintas, empurrado e deixando cair a mistura no chão. 
Depois de limparmos tudo, disse-lhe que queria conversar com ela e perguntei-lhe se me sabia explicar porque tinha feito aquilo, em vez de apenas limpar o leite. Ficou em silêncio e disse
- Deixa-me pensar
- Pois claro, pensa...
Esteve em silêncio e depois disse
- Passam-me assim estas ideias pela cabeça e depois eu faço
- E que coisas são?
- São coisas assim diferentes, para eu fazer... coisas assim diferentes...não ser bem comportada...
- E sabes porque te passam essas coisas pela cabeça?
- Passam-me essas coisas pela cabeça...que dizer eu só sei dizer a parte que te disse, que elas me passam pela cabeça, a outra parte que tu perguntaste, eu não sei...é difícil...

Fiquei a olhar para ela, mexi-lhe no cabelo e tive que concordar. Pensei que a outra parte, aquela que comanda ações menos adequadas do ponto de vista da relação com os outros, os espaços e os acontecimentos, é difícil de narrar pelas crianças, porque lhes está vedada em termos de consciência e pensamento. Agem sem que saibam porquê e para quê e compete ao educador e à sua capacidade de escuta e observação, ler para além do vísível e do imediato, tentando alcançar as origens e a razão dos comportamentos menos positivos. Não se trata, contudo, de encontrar as explicações tantas vezes leves e pouco fundamentadas para a vida que fervilha dentro de cada um, mas aliar, numa dimensão reticular, compreensão e principalmente estratégias para a mudança. Os meninos e meninas que fazem birras, batem, desafiam os adultos, rasgam os trabalhos dos outros, esperam que os contenham, os amparem  e os libertem das amarras que os aprisionam dentro de si.

http://images3.minhavida.com.br/imagensConteudo/13989/sexismo_13989_24815.jpgNão é fácil, como disse a M., tanto mais que não se trata apenas de um menino, mas dos ecos, em muitos meninos, de histórias de dores, ausências, tristezas, carências, que encontram na vivência da sala o espaço certo para se expressarem e virem à luz do dia.
Num processo de projeção, mandam contra nós, as mesmas atitudes e comportamentos que desde bebés foram moldando no seio das famílias e da comunidade a que pertencem.

As estratégias para contrariar este estado de coisas, morrem tantas vezes na praia e tenho para mim que as falas - dos crescidos e dos pequenos - são um instrumento valioso para nos ligar, construir sentido para o que somos e queremos vir a ser.
Um instrumento lento, pois, mas espero que poderoso e transformador, ainda que não único, porque às vezes apenas falar não basta. Um instrumento que possibilita também ao educador repensar-se e repensar o currículo e a sua função no grupo.

De resto, vamos vendo (tímidas) modificações nos comportamentos. E confirmações do que somos e fazemos. Como no outro dia em que falámos do que os meninos e meninas queriam ser quando fossem grandes. Depois de dizerem de sua justiça (médica de bebés, médica de animais, cabeleireira, policia, bombeiro, camionista, comboionista, bailarina, mãe...), vimos o que era preciso aprender para ter cada profissão e poder alcançá-la, no futuro. Nessa conversa um dos meninos, disse-me
- E tu, Manela, o que queres ser?
Ía responder "já sou educadora", mas disse, quase sem pensar
- Quero ser uma educadora feliz, convosco.
Ficaram a olhar-me, em silêncio, alguns com um sorriso e ele disse
- Eu acho que tu és a melhor educadora do mundo...
- E porquê, sabes-me dizer?
- Olha, porque...quando me encosto a ti, tu és quentinha como a minha mãe.

Fiquei sem resposta a pensar que estava tudo dito e tudo por dizer. E fazer. Dei por mim a pensar em como esta relação de afeto é boa e quente e reconfortante, mas como, talvez, possa ser, por si só, uma armadilha na construção de novos sentidos e novas atitudes e disposições. E lembrei-me do João dos Santos e do seu texto "tire a mãe da boca e aprenda matemática com as tias", onde se reflete sobre a necessidade de construir maior autonomia e distanciamento para que as aprendizagens tenham lugar.

Já tenho TPC para a interrupção do período letivo, no natal. Pensar se estarei a ser mais mãe que educadora ou por onde passa o equilíbrio entre estas figuras de referência, o que significa, entre muitas outras coisas, repensar o currículo na sua dimensão do desenvolvimento pessoal e social e o meu lugar como educadora, neste grupo.
Será que vou ter tempo para comer as sonhos de natal?

Sem comentários:

Enviar um comentário