sábado, 13 de fevereiro de 2016

Amizade

Chuva mansa na tarde cinzenta, árvores despidas e no entanto muito belas. Erguem-se para o céu, mudas e quietas, estátuas perfeitas do inverno. Aguardam, em porte altivo e sedutor, o esplendor dos dias. Os olhos prendem-se nas suas formas, a procurar a beleza, sempre a beleza, para serenar o tempo e as emoções, retardar o impossível, aperfeiçoar a crença na coragem e na alegria e inventar outras estações.

Debaixo do chapéu de chuva, sem isto dizer, era isto que significava as palavras que trocavam, círculos repetidos de substantivos próprios, em forma de alegoria e confissão, por entre a chuva que caía e se enrolava na lama e tocava os pés e salpicava as ervas e molhava o chão

Uma tarde de inverno e elas a tecer primaveras, a alimentar certezas, a interrogar sinais, de peito aberto, frente ao coraç
ão. Porque se queriam assim, despidas de roupagens de tapar invernos, sem medos para enganar memórias, forjando o momento com o que foram e sonharam.
Entre arremessos de liberdade, compunham o seu coração de mulheres, batidas trémulas e arrojadas, num compasso de espantar aves em campos de trigo dourado, como se primavera fosse.

E no entanto, a chuva a cair e elas para ali, naquele descampado de árvores altas, poças de água no chão, a alimentar as crenças, a perpetuar sonhos, rindo e trocando ideias, em relances de fé e acertos. Com um guarda-chuva e um punhado de tempo, ali o desfiavam, desatando nós cegos e pontas soltas, para remendar e ordenar de novo, num artesanato fino e amigável. Esperançoso.

Apenas as lágrimas de vez em quando igualavam o dia, porque no entretanto compunham, sem parcimónia, ainda que com cuidado velado, o nascer do sol e da alegria. Teimosamente.


segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Cuidar bem...

Fomos vê-la e de novo me aquietei no seu rosto. Desta vez, mais magro e envelhecido, mantendo contudo sons de um riso fresco de mulher outrora alegre e jovial. Mas desta vez as lágrimas correram com mais ligeireza, desobedientes à sua coragem, lucidez e ousadia de querer ainda sonhar os dias.

Tem 90 anos. Já lhe dediquei um texto neste blogue, quando o ano passado a fomos ver. Ágil e inquieta, mostrou-nos os escritos, as revistas e as suas coisas de mulher atenta ao mundo e aos outros. Hoje não, falou-nos da fisioterapia, da luta com o andarilho onde treina todos os dias para voltar a andar. E falou-nos do passado, do marido, da filha e de sobrinhos que não esquece e integra nos dias que vive, forrando-os de identidade, amor e vida. Dei-lhe a mão e ali estivemos, conversando com outros que também lá estão, passando por nós, um vai e vem permanente, mais velhos e mais novos, sorrisos e paragens, trocas de mimos e novidades... são os meus sobrinhos...já está melhor, D. Maria? aquela ali é muito engraçada... referindo-se às profissionais (amigas) que tratam de si e de muitos outros.

http://st.depositphotos.com/1202868/1803/i/450/depositphotos_18035163-An-old-woman-and-a-kid-holding-hands-together.jpgRegressei a casa, em silêncio, a ruminar, de forma entupida, na vida. A pensar nela, naquela casa, nas pessoas que a habitam e nos profissionais cuidadores. De como precisam de ser resilientes, empáticos, competentes e amorosos. Atentos e empenhados nos cuidados que prestam, que tendo o corpo como destino, têm o coração e as emoções como lugar principal. E os direitos como esteira e pano de fundo. O direito a uma vida digna, a cuidados de qualidade, a presenças calorosas e implicadas no dia-a-dia de todos, construindo uma cultura organizacional individualizada e prestável. Amiga e atenta.

E vi-me a fazer paralelo entre o cuidar da infância e o cuidar da velhice, e como há tantas matérias que se intercetam e complementam nestas profissões do humano, e que se centram em competências emocionais e  interativas, fortemente ancoradas em atitudes de empatia, compreensão e humanidade.

Porque os homens e as mulheres que vimos, já foram crianças, já foram pais e mães, já foram profissionais. Cuidaram de outros, participaram na construção do seu tempo, deram de si ao mundo: corpo, emoção, razão, trabalho, riso, afeto. 

E porque as crianças necessitam também desta experiência, para se sentirem amadas e valorizadas, bem queridas. Para que possam construir, em concreto, esta aprendizagem, numa abordagem inequívoca de interação positiva e fortemente atenta aos outros, para bem cuidar e bem tratar, agora e no futuro.
Para que o mundo seja mais justo para todos, os que chegam ao mundo e os que dele se preparam para partir. 

domingo, 24 de janeiro de 2016

De pequenino se torce o destino

Um sol quente e um dia de luz. Ainda bem, precisávamos dele assim, depois das sombras pardacentas deste inverno que nos acompanha.
Volto a emocionar-me neste dia, apesar de não ser o inicial. Volto a emocionar-me com a ida às urnas, vendo em cada homem e em cada mulher a liberdade. Para pensar, decidir e expressar a sua opinião. Volto a emocionar-me com esta conquista e este direito, pelo qual um conjunto de mulheres lutou arduamente. Não podemos, em sua honra, ficar em casa. Não podemos diminuir a democracia, encurtar-lhe os sonhos, rasgar-lhe a utopia e a realidade. Porque a queremos ver a crescer nos dias que temos e na vida que construímos todos os dias. E porque a democracia não é dado adquirido, é matéria para realimentar, investir e fazer vingar. Hoje e sempre, aqui e em todos os lugares.

http://www.comunidaddeaprendizaje.com.es/files/post/image/40/slide_estudos%20part%20pais.jpgPor isso lutamos por ela como uma pele que nos cobre e no identifica. Em casa, na escola, com pequenos, grandes e médios... diriam os meus meninos se com eles estivesse a conversar. E diriam mais, porque sabem, apesar dos erros e das imperfeições, que é pela democracia e pela liberdade que nos batemos todos lá na sala. Não é um caminho fácil, mas é o único que a dignidade de cada um de exige.

Apesar de pequenos, os meninos sabem, porque vivem, que a participação é uma prática, por isso uma causa séria da vida da sala. Os meninos sabem que todos têm lugar e todos podem ser, através de palavras, ações, registos, discussões. Acertos e desacertos. Em cada dia, no final de semana, nos conselhos que realizamos, nas decisões que tomamos, nas escolhas que fazemos, tentamos dar corpo a este princípio e a esta prática. Com alegria, com choro, às vezes, com contenção, com surpresa, com resistência, com solidariedade. Constuir o nosso lugar e o lugar dos outros para um bem comum, não é coisa fácil, mas é coisa boa.

As crianças aprendem que esta é a forma justa de viver em comunidade. Se as crianças podem e aprendem e se tornam mestres nesta arte, porque é que os adultos se diminuem e se omitem na condução dos seus destinos? 

Esperemos que hoje não tenha sido assim e que a participação nas eleições nos orgulhe da nossa consciência cívica e participativa. Para bem da democracia e da vida de todos nós. Vamos? Ainda há tempo.

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Cantata para 2016

Uma luz suave cobre o fim de tarde, entra quente e morna pela janela do sótão. Há um silêncio aconchegante aqui, apenas interrompido pelo som de um piano que toca, a lembrar passos de dança num qualquer lugar do mundo. Palco gigante, pés leves e vestes soltas, numa insustentável leveza do ser.

Assim me encosto neste fim de dia, enrolada em lembranças de trazer por casa, em intimidade plena, eu comigo, estonteada pelo passar dos anos. Muitos. Da eternidade deste tempo, retenho imagens fortes de momentos charneira, risos e lágrimas a compô-los em molduras nunca esquecidas pelo passar dos anos. Permanecem até hoje a esteira certa para descansar cansaços.

https://www.artmajeur.com/files/artelir/images/artworks/650x650/6843115_dsc01860.jpgDetenho o olhar no verde das árvores da rua, nos muitos livros das estantes que circundam o lugar onde estou e que é uma espécie de céu cá de casa. Daqui, em muitos dias, elucidei o meu viver, procurando nas palavras o sal da minha terra. Essa, que lavrei e cultivei, só ou com outros, buscando no seu calor a força para manter a rebeldia dos sonhos. Porque resistir impõe o amparo e a coragem de quem nos ama.  

Assim estou, neste lugar e neste tempo, a afagar palavras e a recompor memórias. Parecem ser o apanágio certo para prolongar futuros.

Assim me quero e vos quero, para 2016. Aconchegados no que fomos, prontos para inventar o que seremos. 

Entre os meus dias, alguns são de facto para sempre. sobre eles anoto cuidadosamente a memória, e a intensidade da vida mantém-se. é uma questão de intensidade. Só assim nos volta a florir o coração e a sensação de ascensão se repete (Hugo Valter Mãe)

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Está a chegar

Está a chegar. Sentimo-lo no frio que gelas as mãos, no calor que aquece o coração, na luz das estrelas que inundam a cidade. Podemos até não gostar muito dele, comentar o seu consumo desenfreado, negar a solidez do dia, não ligar ao menino que de tão pobre nasceu no estábulo, mas ele está a chegar. 

Ele está a chegar e convoca todos para comemorar. Vem em forma de sino, laço vermelho no topo da árvore, música celestial, cartão de boas festas e renovação de votos. Enche-se de encanto e vaidade, retoca o aprumo e apresenta-se, de novo, em cada ano, em forma de mesa posta e cuidada, travessas doces e sorrisos prontos, numa noite de enlaçar dedos, oferecer abraços, prolongar regaços.

http://acolitos.carmelitas.pt/blog/wp-content/uploads/2008/12/presepio-ii.jpgE nós esperamos por ele, resistindo à abundância sem rei nem roque, confirmando os colos e as palhinhas que nos encheram o corpo de identidade. E comemoramos quem somos, por via de quem nos fez, nos retocou e andaimou para a vida que hoje temos e vivemos. Mães, companheiros, filhos, irmãos, amigos. 

Abrimos a porta do tempo e da paisagem onde estamos esculpidos, caminhos mapeados ao longo de anos, planícies, escarpas, mares eternos e florestas densas e convidamos todos para connosco estarem. Construímos um presépio vivo com aquilo que temos e somos, agradecendo aqueles que, com candeia acesa, nos iluminaram os dias e amainaram as noites. Presentes e ausentes.

Ele está a chegar, é natal no mundo e no quente das nossas casas. Assim pudesse ser para todos.

domingo, 13 de dezembro de 2015

Famílias e caldos de afeto

Um encanto de noite, calor na sala e rostos bonitos, alegria e surpresa, família e amigos a festejar um aniversário. Fico quieta num canto a saborear a leveza dos gestos e a certeza dos laços que ligam todos os que ali estão. Uma espécie de fio delicado e no entanto inquebrável, juro que parece mais forte e pleno com o passar dos anos. Porque os conhecemos desde sempre, as meninas já cresceram e já mimam os filhos, os avós por ali andam a acolher abraços, os tios serenos a compor a casa, o amor e a autonomia como condição para se crescer com raízes.
E as raízes contam e seguram cada um num chão que dá flor e fruto e sombra para se viver com passos largos e confiantes. E as vozes elevam-se no ar e cantam-se cantigas de hoje e de ontem, todos juntos a uma só voz, apesar de timbres diferentes e jeitos diversos. Assim podem cantar porque se souberam amar e desafiar no correr dos dias. E é bom de ver e bom de sentir.

https://elikatakimoto.files.wordpress.com/2013/12/natal.jpgE penso na escola e na semana que também foi de famílias na sala. Responderam à chamada e ali chegaram, pegaram em materiais diversos, abrilhantaram-nos a seu gosto e jeito, desenharam, colaram, confrontaram e admiraram-se com as obras produzidas. Eu também.
Os meninos e meninas pelo meio, cada um consigo mesmo e todos em interação, num espaço, tenta-se, que seja de oportunidade de participação e criação de laços. Risos e brincadeiras, a manha a decorrer como sempre, às entre o caótico e o organizado, pinturas, desenhos, zangas e escritas no diário e seis mães (neste caso...) a poderem sentir o fazer dos dias na nossa sala, que queremos que também seja delas, para uma pertença maior. Porque pertencer é condição e exigência de sucesso, inclusão e aprendizagem. E é bom de ver e bom de sentir.

A noite de encanto entre amigos e o rebuliço bom da sala, nesta semana, lembraram-me que as famílias são espaços emocionais onde estão as raízes da identidade (Sousa, 1998). Por isso são o caldo onde cada um se faz e se forja como pessoa no mundo. Um caldo nem sempre quente e substantivo para alimentar o corpo e o coração, como sabemos. Mas também sei, que se a educação não muda tudo, alguma coisa a educação muda (Paulo Freire) pelo que acredito que o jardim-de- infância e as práticas de participação podem ajudar a servir um menu mais rico, diversificado e quente onde os caldos reforcem os laços de afeto, valorização e apoio entre famílias e crianças.  

Tentemos. No natal e durante todo o ano. 

sábado, 5 de dezembro de 2015

Natal para todos

Aqui estou em dezembro, a sentir o natal por perto, um frio bom que quer camisolas grossas e um cachecol junto ao pescoço. Temos sorte. Mas há quem a não tenha. 

Lá na escola tentamos constuír um tempo de magia, mas perdemos a graça frente à realidade. Não é a graça, é o sentido da intervenção em contexto. Temos que ser lúcidos e sensatos, dosear a imaginação e a euforia que porventura nos possa inundar neste tempo. O tempo do menino que veio para dar mais justiça ao mundo, dizem. Pois é. Mas o mundo é feito pelos homens e os homens, não raras vezes, esquecem-se de o fazer bem. Justo e igual, sem pobreza. Para além das festas de solidariedade e das intenções políticas em campanhas eleitorais e folhas de excel.  

http://www.mensagenscomamor.com/images/jpgs/img/f/frases_natal.jpgCusta sentir a pobreza. E não há como ignorar que ela afeta cada vez mais as crianças, sendo hoje intolerável o numero daquelas que, no corpo e na alma, se sentem excluídos dos seus direitos fundamentais. Porque as crianças sentem, sabem e confirmam-nos as suas dores. Por palavras, por silêncios, por gestos inquietos e magoados. Pois. 

E assim estamos. A tentar aquecer a sala, a decorar as paredes, a ouvir o que dizem. A tentar fazer um natal, sem mexer muito nele. Para que não seja, o seu festejo, uma marca de exclusão. Num tempo que dizem, ser para todos.

Com a noite a aproximar-se, fico com Sebastião da Gama.

Somos de barro

Somos de barro. Iguais aos mais.
Ó alegria de sabê-lo!
(correi, felizes lágrimas,
por sobre o seu cabelo!)

Depois de mais aquela confissão
impuros nos achámos;
nos descobrimos 
frutos do mesmo chão.

Pecado, amor? pecado fora apenas
não fazer do pecado
a força que nos ligue e nos obrigue
a lutar lado a lado.