sábado, 26 de março de 2016

Intimidade

Enquanto não choveu andei a dar uma volta pelo jardim, a apanhar ervas e a limpar folhas, que outras coisas, nesta arte, não sei fazer. Reparei nas minhas mãos e lembrei-me das tuas, no mesmo gesto. Iguais. E tu vieste de novo para perto de mim, antecipando a Páscoa e a saudade. E fizeste bem, tinhas que vir, amanha, domingo de Páscoa, comemorarias os teus 84 anos. Seria uma festa redobrada, porque no dia em que nasceste era domingo de Páscoa.

Se não fossem as mãos seria a saudade. E a vontade que tenho de poder falar-te de coisas inconfessáveis, sentimentos vagos que me alastram na pele e no coração, sacudo-os quando me invadem, digo-lhes para irem dar uma volta, que o mundo é grande, o futuro é distante e os meus sonhos são poderosos como na juventude. Quer dizer, espera, estão menos urgentes e mais razoáveis, sim, mas continuam a ser sonhos. Creio que também os tinhas, os teus, e quando te via rir espantava-me com a meninice do olhar, uma doçura alegre, leve e folgada, a contrastar com as (poucas) rugas do rosto. Era o antídoto contra a passagem do tempo, uma forma de resistir e contrariar o destino e a aproximação do futuro. Hoje sei que não lhe atribui o sentido que lhe davas, essa vontade desmedida de continuares a viver e a amar, porque era isso que gostavas de fazer. E sabes porquê? porque de alguma forma, quando somos mais novos, menosprezamos o valor e o sentido do que sentem os mais velhos. Como se apenas aos mais novos pertencesse a ousadia e a necessidade de reinventar o mundo e a vida. Foi assim contigo, é agora assim comigo. 

http://static8.depositphotos.com/1036242/953/i/950/depositphotos_9538555-Hands-of-a-Woman-Caring-on-the-Garden.jpg E era sobre isto que te queria falar.  Sobre a passagem do tempo no corpo, na alma e no coração. Se estivesses cá amanha, não seriam, contudo, necessárias muitas palavras para te dizer isto (e muito mais) porque junto a mim, a apanhar ervas, verias as minhas mãos mais velhas e em silêncio pensarias, sem dizer nada, que tal como tu, eu estou a envelhecer. Mas se estivesses cá amanha, eu sei que aproveitaríamos para comemorar a vida, a ressurreição, a alegria de estarmos todos juntos. A mesa teria um bolo de aniversário, cantaríamos os parabéns e os rapazes diriam graças e tu ficarias com os olhos ternos de tanto amor. Por eles, por mim, por nós.

É isso que me faz falta e foi por isso que me lembrei de ti ao olhar para as minhas mãos. Tenho saudades das tuas, a mexer nas coisas em jeito de afago e a cirandar pela casa, discreta e quase invisível, mas sempre presente. Isso faz-me falta hoje e agora para viver a Páscoa com mais alegria e para entender, com mais sabedoria, como sou agora. 
  

sexta-feira, 25 de março de 2016

A vida da gente

A vida da gente tem pedras ásperas, pequenas e grandes, perdidas no chão, escorregam e caem em demasia, enrolam e estremecem com o peso dos pés, deslocam-se do lugar e voltam de novo, persistem sem pedir licença. Atravessá-las de corpo aprumado, em pontos incertos de equilíbrio, sem vergar às suas escorregadias formas é o propósito firme de cada dia. Sempre.

A vida da gente tem crianças pequenas, parecem pássaros aflitos, estonteiam-se em brincadeiras de azul, procuram o sol e voos livres, falam e sonham e riem do desenho, inventam heróis em fantasias de amigos, abraçam quente e choram alto, querem porque sim e porque não. Esperam-nos a cada manhã, com olhos de  espanto e expectativas justas. Exigem corações abertos e pessoas inteiras, prontas a reinventar a alegria, a cada dia que passa.  

https://s-media-cache-ak0.pinimg.com/236x/85/b7/4d/85b74d25300bce351fd46a21cb1d4421.jpgA vida da gente tem sonhos eternos, persistem novos no tempo mais velho, reclamam espaço e arco de flecha, são pontos de luz nas noites de breu. Tecê-los é a arte mais difícil, pegamos nas pontas e acertamos princípios, encarreiramos caminhos e compomos quimeras, desfazemos o nó e começamos de novo, procurando a ponta certa da meada. Mais uma vez e eternamente.

A vida da gente tem amigos do peito, gente que ri e abraça com força, homens e mulheres da mesma jornada, juntos nos fazemos ao desassossego dos dias, teimamos igual e fazemos figas, somos enormes com eles em nós. Alimentá-los é o nosso futuro, em rituais de todos os dias, com café quente e esplanadas com sol. E risos e palavras para lavar medos
.
A vida da gente tem primaveras, dias tépidos para afugentar invernos, papoilas vermelhas da revolução, como um estado e uma condição. A vida da gente  renova-se assim, numa marcha cerrada para fazer de novo, esperando o sol como casaco quente e os dias longos como esteiras de paz.
A vida da gente é palavra, rosto, fé, alegria, saudade, medo, coragem e ressurreição. A cada dia que passa. Hoje e sempre.

segunda-feira, 7 de março de 2016

Dia da mulher

Pelas mulheres do mundo e pelas mulheres da nossa vida. Mães, filhas, amigas, irmãs, companheiras. Pela sua tenacidade, força, liberdade, luta e alegria. Por porem a mesa e aconchegarem o lençol, por darem colo e beijos, por refilarem na fila do autocarro, por acalmarem medos e soluços, por ouvirem sem pressa, por fazerem café com leite e torradas, por se alindarem e quererem a paz, por se levantarem cedo para o trabalho, por dançarem em forma de pássaros, por sonharem com os filhos por perto, por acreditarem, por não desistirem e voltarem a querer. 

Pelas suas teimosias, sonhos e devaneios. Pelo que lutaram e podem voltar a lutar, se o tempo não for de feição.  Pelo seu riso, apesar das dores e lágrimas. Pelas suas lágrimas, apesar do riso. Pelo seu amor, combate e rebeldia. Pela sua coragem e persistência. Pela sua utopia.
Pela sua presença, apesar da ausência. Por serem eternas e não nos deixarem sós. 


O mar dos meus olhos

Há mulheres que trazem o mar nos olhos
Não pela cor
Mas pela vastidão da alma

E trazem a poesia nos dedos e nos sorrisos                    
Ficam para além do tempo
Como se a maré nunca as levasse
Da praia onde foram felizes

Há mulheres que trazem o mar nos olhos
pela grandeza da imensidão da alma
pelo infinito modo como abarcam as coisas e os homens...
Há mulheres que são maré em noites de tardes...
e calma


Sophia de Mello Breyner, in Obra Poética

domingo, 6 de março de 2016

Em frente ao espelho

Não gosto do vento frio e agreste, dá-me desconforto e fragilidade, uma espécie de mau estar, de coisa inóspita, raízes secas a desprenderam-se do chão, areia e espaço aberto, sem ponta de abrigo, lugar essencial para me aconchegar. Estou assim hoje e tenho andado assim. Estonteada pela vida, absorta em mil pensamentos, presa à realidade, sem lhe vislumbrar sonho e poesia. Fogem-me as palavras, foge-me a arte de lhes revelar os contornos, perde-se a magia e o riso claro de as escolher, com encanto e liberdade. Não consigo mais inventar outro tempo, neste tempo. E preciso. 

http://not1.xpg.uol.com.br/wp-content/uploads/2015/04/CLASSE-DE-PALAVRAS.jpgPara me recompor e recuperar do que vejo e me cerca, um mundo quadrado, com linhas fechadas, gente de galões com certezas feitas, destinos marcados antes de serem vividos, horizontes sem a luz doce do anoitecer que antecede as manhãs justas de alegria.

Não consigo mais inventar outro tempo, neste tempo. E preciso. De voltar a sentir que as palavras são o reino onde construo os cenários da vida, sem limites para a sonhar e sentir a escorrer e a perder-se, vertiginosa, com as batidas do coração e a força do sangue que corre nas veias. Coisa forte e mobilizadora, uma espécie de resistência ao desgaste e à impotência. Coisa alegre. Coisa nova.

E preciso. Para rasgar as vestes que escolhem para me vestir, todos os dias, teimando que a vida é aquilo que é, olhando de soslaio para os meus sonhos de mulher adulta, com idade para ser mais razoável, dizem. De tanto dizerem quase me convenço, embrulho a emoção e enrolo-me em mim, perco o sonho e as palavras, fico pobre e menos capaz.

Por isso preciso de encontrar de novo a magia das palavras.  Elas são espada, flor, luz e claridade para reinventar os dias e a vida. Teimam em não chegar, por agora. Contudo espero-as, expectante. Será que vão demorar? 

sábado, 13 de fevereiro de 2016

Amizade

Chuva mansa na tarde cinzenta, árvores despidas e no entanto muito belas. Erguem-se para o céu, mudas e quietas, estátuas perfeitas do inverno. Aguardam, em porte altivo e sedutor, o esplendor dos dias. Os olhos prendem-se nas suas formas, a procurar a beleza, sempre a beleza, para serenar o tempo e as emoções, retardar o impossível, aperfeiçoar a crença na coragem e na alegria e inventar outras estações.

Debaixo do chapéu de chuva, sem isto dizer, era isto que significava as palavras que trocavam, círculos repetidos de substantivos próprios, em forma de alegoria e confissão, por entre a chuva que caía e se enrolava na lama e tocava os pés e salpicava as ervas e molhava o chão

Uma tarde de inverno e elas a tecer primaveras, a alimentar certezas, a interrogar sinais, de peito aberto, frente ao coraç
ão. Porque se queriam assim, despidas de roupagens de tapar invernos, sem medos para enganar memórias, forjando o momento com o que foram e sonharam.
Entre arremessos de liberdade, compunham o seu coração de mulheres, batidas trémulas e arrojadas, num compasso de espantar aves em campos de trigo dourado, como se primavera fosse.

E no entanto, a chuva a cair e elas para ali, naquele descampado de árvores altas, poças de água no chão, a alimentar as crenças, a perpetuar sonhos, rindo e trocando ideias, em relances de fé e acertos. Com um guarda-chuva e um punhado de tempo, ali o desfiavam, desatando nós cegos e pontas soltas, para remendar e ordenar de novo, num artesanato fino e amigável. Esperançoso.

Apenas as lágrimas de vez em quando igualavam o dia, porque no entretanto compunham, sem parcimónia, ainda que com cuidado velado, o nascer do sol e da alegria. Teimosamente.


segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Cuidar bem...

Fomos vê-la e de novo me aquietei no seu rosto. Desta vez, mais magro e envelhecido, mantendo contudo sons de um riso fresco de mulher outrora alegre e jovial. Mas desta vez as lágrimas correram com mais ligeireza, desobedientes à sua coragem, lucidez e ousadia de querer ainda sonhar os dias.

Tem 90 anos. Já lhe dediquei um texto neste blogue, quando o ano passado a fomos ver. Ágil e inquieta, mostrou-nos os escritos, as revistas e as suas coisas de mulher atenta ao mundo e aos outros. Hoje não, falou-nos da fisioterapia, da luta com o andarilho onde treina todos os dias para voltar a andar. E falou-nos do passado, do marido, da filha e de sobrinhos que não esquece e integra nos dias que vive, forrando-os de identidade, amor e vida. Dei-lhe a mão e ali estivemos, conversando com outros que também lá estão, passando por nós, um vai e vem permanente, mais velhos e mais novos, sorrisos e paragens, trocas de mimos e novidades... são os meus sobrinhos...já está melhor, D. Maria? aquela ali é muito engraçada... referindo-se às profissionais (amigas) que tratam de si e de muitos outros.

http://st.depositphotos.com/1202868/1803/i/450/depositphotos_18035163-An-old-woman-and-a-kid-holding-hands-together.jpgRegressei a casa, em silêncio, a ruminar, de forma entupida, na vida. A pensar nela, naquela casa, nas pessoas que a habitam e nos profissionais cuidadores. De como precisam de ser resilientes, empáticos, competentes e amorosos. Atentos e empenhados nos cuidados que prestam, que tendo o corpo como destino, têm o coração e as emoções como lugar principal. E os direitos como esteira e pano de fundo. O direito a uma vida digna, a cuidados de qualidade, a presenças calorosas e implicadas no dia-a-dia de todos, construindo uma cultura organizacional individualizada e prestável. Amiga e atenta.

E vi-me a fazer paralelo entre o cuidar da infância e o cuidar da velhice, e como há tantas matérias que se intercetam e complementam nestas profissões do humano, e que se centram em competências emocionais e  interativas, fortemente ancoradas em atitudes de empatia, compreensão e humanidade.

Porque os homens e as mulheres que vimos, já foram crianças, já foram pais e mães, já foram profissionais. Cuidaram de outros, participaram na construção do seu tempo, deram de si ao mundo: corpo, emoção, razão, trabalho, riso, afeto. 

E porque as crianças necessitam também desta experiência, para se sentirem amadas e valorizadas, bem queridas. Para que possam construir, em concreto, esta aprendizagem, numa abordagem inequívoca de interação positiva e fortemente atenta aos outros, para bem cuidar e bem tratar, agora e no futuro.
Para que o mundo seja mais justo para todos, os que chegam ao mundo e os que dele se preparam para partir. 

domingo, 24 de janeiro de 2016

De pequenino se torce o destino

Um sol quente e um dia de luz. Ainda bem, precisávamos dele assim, depois das sombras pardacentas deste inverno que nos acompanha.
Volto a emocionar-me neste dia, apesar de não ser o inicial. Volto a emocionar-me com a ida às urnas, vendo em cada homem e em cada mulher a liberdade. Para pensar, decidir e expressar a sua opinião. Volto a emocionar-me com esta conquista e este direito, pelo qual um conjunto de mulheres lutou arduamente. Não podemos, em sua honra, ficar em casa. Não podemos diminuir a democracia, encurtar-lhe os sonhos, rasgar-lhe a utopia e a realidade. Porque a queremos ver a crescer nos dias que temos e na vida que construímos todos os dias. E porque a democracia não é dado adquirido, é matéria para realimentar, investir e fazer vingar. Hoje e sempre, aqui e em todos os lugares.

http://www.comunidaddeaprendizaje.com.es/files/post/image/40/slide_estudos%20part%20pais.jpgPor isso lutamos por ela como uma pele que nos cobre e no identifica. Em casa, na escola, com pequenos, grandes e médios... diriam os meus meninos se com eles estivesse a conversar. E diriam mais, porque sabem, apesar dos erros e das imperfeições, que é pela democracia e pela liberdade que nos batemos todos lá na sala. Não é um caminho fácil, mas é o único que a dignidade de cada um de exige.

Apesar de pequenos, os meninos sabem, porque vivem, que a participação é uma prática, por isso uma causa séria da vida da sala. Os meninos sabem que todos têm lugar e todos podem ser, através de palavras, ações, registos, discussões. Acertos e desacertos. Em cada dia, no final de semana, nos conselhos que realizamos, nas decisões que tomamos, nas escolhas que fazemos, tentamos dar corpo a este princípio e a esta prática. Com alegria, com choro, às vezes, com contenção, com surpresa, com resistência, com solidariedade. Constuir o nosso lugar e o lugar dos outros para um bem comum, não é coisa fácil, mas é coisa boa.

As crianças aprendem que esta é a forma justa de viver em comunidade. Se as crianças podem e aprendem e se tornam mestres nesta arte, porque é que os adultos se diminuem e se omitem na condução dos seus destinos? 

Esperemos que hoje não tenha sido assim e que a participação nas eleições nos orgulhe da nossa consciência cívica e participativa. Para bem da democracia e da vida de todos nós. Vamos? Ainda há tempo.