sábado, 30 de julho de 2016

Propósito(s) de verão

Deter  o tempo e inspirar a lonjura do silêncio. Segui-lo até à imensidão da alma, abrir a porta, sacudir as últimas migalhas de cansaço, ensaiar uma dança na claridade do jardim, sorver as primeiras gotas puras do dia, antever a tua chegada por entre os espaços soltos da memória. Confinar-me nessa alegria, uma espécie de promessa de mel espalhado no pão, saciar a sede de infinito e beleza do mundo. Tê-la o mais possível dentro de mim e junto às imperfeições da vida.  

https://thumbs.dreamstime.com/x/two-seagulls-near-sea-6493054.jpgDepois passear pelo esplendor do rosto dos amigos, gente segura e sempre certa. Rever com tempo o seu presente, animá-lo ao som da amizade que é de pedra e cal e está para durar. Entender e aceitar essa esteira boa de quem caminha com outros. soltar gargalhadas na esplanada mais perfeita para ver o mar, o azul da água a brilhar no colo da areia, o vento a acariciar as penas brancas das gaivotas. Adormecer ao som do seu grasnar.

Depois sorrir das certezas, sem receio da presunção e água benta. E escrever. Agarrar a liberdade e deter palavras, impedi-las das suas fugas, inscrevê-las em ladainhas de enredos e verdade. Cativar a sua luz e o poder de cumprirem histórias e sonhos. Uma espécie de dicionário da realização da vida, a incansável procura da sua beleza e sentido.  

Depois dormir, ler e descansar. Sair para espantar rotinas, deitar fora o que incrustou na pele e é, em alguns dias, uma segunda camada, a perturbar o ritmo da invenção dos dias. Da mudança de nós, por nós. Sem atilhos e nós cegos. 
Com rédeas soltas, para procurar a beleza e a maravilha. Como nos diz Eugénio de Andrade


Procura a maravilha

Onde um beijo sabe
a barcos e bruma. 

No brilho redondo 
e jovem dos joelhos.

Na noite inclinada
de melancolia.

Procura.
Procura a maravilha

Eugénio de Andrade 

sexta-feira, 22 de julho de 2016

Postal em dia de verão

A água a bater forte contra a areia e a mulher a interrogar-se sobre o vai e vem da vida, a sua e a de outros. As gotas salpicadas um pouco por todo o lado, a fazer vingar a ideia da liberdade do verão. Uma liberdade gostosa e hoje, afinal, coisa pouca. Porque os tempos são ditados pelos estados de alma e pode ser inverno em pleno verão. Pois pode. 

E era assim que estava surpreendida com o correr dos dias menos ditosos. Sabia, pela idade que tinha, que as promessas não são como os frutos maduros que se apanham em tempo certo. Existe a probabilidade de se arrancar da árvore a maça ainda verde, mesmo que se saiba de cor o ciclo da vida. Os homens são capazes de gestos descabidos e contranatura. Crescem com amarras no corpo e nos sonhos, levam a vida toda para desembaraçar inercias e alcançar asas nos pés.  

https://image.freepik.com/fotos-gratis/o-por-do-sol-na-praia-de-bali_21179879.jpg 
Olhou de novo o mar e abeirou-se da tristeza. Um instante apenas, num laivo de desencanto. Depois reagiu e aprumou-se. Não ia de bem consigo eternizar a nostalgia da água a espraiar-se, sem rumo. Se já tinha movido montanhas em dias de vento norte e tempo seco, como deter-se agora, face à serena imensidão do mar? 

Levantou-se e sacudiu a areia e o desalento. Esperaria pelo cair da noite e a renovação do dia, na convicção de mudar as lentes de ver o mundo. 

Apesar das rugas acontecia-lhe, não raras vezes, inventar-se com a certeza da juventude. 
Mas isso era segredo e não dizia a ninguém, não gostava de risos disfarçados em rostos condescendentes.     


sábado, 9 de julho de 2016

Avaliar. Para quem escrevemos?

Escrevo. Junto as palavras e componho as ideias, relembro ações e consulto os factos, descrevo, o mais detalhadamente possível, o trajeto de evolução e aprendizagem. Tento garantir, por escrito, que em setembro, o saibam acolher e abraçar, tal qual ele é e pode vir a ser. Uma pessoa, com recursos e promessas. 

Emociono-me. Três anos de caminho, ao principio o corpo todo em tudo, tinta e cola na boca, água a escorrer nas mangas, gestos assustados e poucas falas. Apenas os olhos, apenas a emoção, às vezes contra todos, às vezes contra o chão, a cuspir e a deitar fora tudo o que não encaixava na sua experiência. Às vezes zangas, às vezes o cansaço, às vezes o lamento de ser-se tão pequeno e saber já tudo de si e tão pouco de outros mundos. Aos poucos, a alegria, parar para olhar os outros, aprender e envolver-se, por fora e por dentro, desenhos e pinturas mais elaboradas, o pincel de braço dado com a liberdade e o coração, a leveza dos traços, para cima e para o lado, fazer uma casa sem que parecesse, mas a intencionalidade já presente. Agora, a confiança de assinar o nome nas produções e nos mapas, as cores na ponta da língua, a realização das tarefas, a cooperação com outros, o sentido sempre alerta e a curiosidade imparável de quem procura, antes de todos, o que vem nos sacos...  Ah é para fazermos uma casa para os caracóis...eu sei... posso ser o primeiro??? Sempre a tentar garantir o que não tem de mão beijada.
 
https://oexcluido.files.wordpress.com/2011/01/papel-e-caneta1.jpgPara quem escrevo eu? para a família que veio e não sabendo ler, ouviu e conversou e sorriu. E quis confirmar se ele estava bem. E está, pois, menino lindo e combativo, persiste nele uma ligeira agitação, qualquer coisa que o faz levantar-se, perguntar, falar. Mas já sabe ouvir, compenetrar-se nas suas escolhas, iniciar, desenvolver e terminar. Persiste nele um imediatismo na resolução de problemas que o faz bater ou dizer um impropério menos adequado. mas já sabe encontrar palavras boas para oferecer aos outros, discutir no conselho, com argumentos e atenção. E sabe fazer teatro, e sabe dançar e cantar e espanta-se com a beleza e gosta de artistas. E memoriza e compara. e muito mais...e emociono-me de novo e canso-me com tanta escrita. 

Para quem escrevo eu? para uma escola de norma e padrão, onde os diagnósticos são prontos a vestir e as metas uns cardápios que guiam o futuro, sem espaço e gente por dentro, que é como quem diz sem os meninos e meninas autênticos e reais que povoam as nossas salas e a nossa profissão?  

Ou para uma escola que aprende, que diferencia as suas práticas e modos de fazer, desafia cada um de acordo com o que é e sabe e materializa uma aprendizagem a par e passo, centrada no grupo, no contexto de vida das crianças, famílias e comunidade? Uma escola preparada para acolher cada criança, nas suas características, sonhos e condições?

Prefiro pensar nesta ultima solução, para tranquilizar os meus receios e previsões. Para sentir que avaliar assim, descritivamente e centrada nas conquistas e evolução, é bom, é certo e vale a pena. Para que todos tenham lugar e o sucesso seja um direito real e indiscutível.
E não fique a ruminar na ideia que uma colega me disse quando viu uma ficha de avaliação...Bolas, pois...tu fazes assim porque és perfecionista e consciente, mas ninguém vai ligar a isso!...   
Mas vai, não vai?