domingo, 22 de março de 2015

Desejos de primavera

Uma porta larga e um campo aberto, a perder de vista. Um pouco de vento nos cabelos e os pés descalços, uns passos de dança, leves, muito leves. Assim me queria hoje. Para sentir um mundo grande, que este meu anda estreito. Em tudo. Até nas palavras que me faltam. Estranho-me. Desertaram de mim?  Assim parece. Hoje tenho-as a conta-gotas, numa aproximação tímida, as que se disponibilizam encobrem outras, que permanecem teimosamente presas. Temo que sejam as mais importantes. 

Uma porta larga e um campo aberto, a perder de vista e a vontade de nele redesenhar os contornos dos dias descansados. Paz e silêncio. Risos de crianças felizes e a certeza da vida justa. O pão na mesa, água quente para o banho, o cheiro gostoso do sabonete, uma toalha a embrulhar o corpo e um abraço a sustentá-lo. Firme e seguro. Um abraço com palavras para conter a fúria de si. Um sono à noite embalado pela voz de quem se ama. Aconchegar o lençol e o amor, rir do papão em cima do telhado.

https://s-media-cache-ak0.pinimg.com/236x/da/bb/41/dabb41baa9101e91124fb4ecbe2df2bf.jpgUma porta larga e um campo aberto, a perder de vista. Reconstruir as casas e os caminhos, rever a sorte e distribuí-la, cada um numa casa, cada casa com famílias, trabalho e direitos, deveres e compromissos. E projetos. Diversos, coloridos, sem roteiros pré-definidos, em ciclos de pouca sorte. 

Uma porta larga e um campo aberto. Deixar entrar a primavera, acolhê-la num coração sossegado, inspirar os seus perfumes, desfolhar os malmequeres como em criança. Malmequer, bem-me-quer, muito pouco ou nada, se não disseres muito eu fico zangada. Soletrar poemas de amizade e amor, convictamnete e com fé.  Marcá-los no tempo e no corpo. Rir descaradamente pela liberdade e justeza da vida.

Uma porta larga e um campo aberto. A certeza da chegada da primavera como renovação do mundo e das sortes. Baralhar e tornar a dar, como hipótese de tudo ficar no seu devido lugar. Aquele a que todos, homens e mulheres, meninos e meninas, têm direito. O lugar certo, porque o sol quando nasce é para todos. A primavera também.

Assim me queria hoje. Uma porta larga e um campo aberto a todas as possibilidades. Sem meias palavras e meias medidas. Tudo por inteiro, que assim é que somos.

domingo, 8 de março de 2015

Para a minha tia Maria



A minha tia Maria partiu ontem. Era a ultima irmã do meu pai e foi embora sem se lembrar de nós, a memória pregou-lhe uma partida no final da sua longa e boa vida. Apear desta ausência que a doença impôs, sei que nos levou a todos dentro dela, porque era uma mulher de peito grande e oração quente. E riso aberto, a sua última fotografia mostrava um ar de menina doce, rosto suave e olhos sorridentes. Apesar dos seus quase noventa anos.

Lembro-me do seu andar, ligeiro e rápido, cabeça levantada e o corpo deitado para trás, um pouco em arco, como se não tivesse medo de nada e tudo tivesse solução. E tinha. Resolveu, com a destreza certa, todos os nós e laços que a vida lhe deu, uns muito apertados e seguros, outros mais deslaçados, a precisarem de mãos competentes e seguras. Mãe de quatro filhos, avó de oito netos, bisa de cinco bisnetos, amava a sua família e era uma espécie de matriarca, a falar alto e a compor os dias, para cá e para lá, numa labuta constante.

http://chavena.com/sites/default/files/artigos/chavena-com-cafe.jpgCostumava vê-la durante o verão, uma visita que se impunha desde menina. A casa dela cheirava sempre a café e o convite era certo, vamos beber café com leite. Sabia pela vida. E pela vida sabia também, o olhar que me oferecia, cheio de cumplicidade de quem conhecia e conhecendo-me, sabia ser apoiante e discreta.

Cunhada da minha mãe, foi sua ouvinte e conselheira, num tempo em que a vida parecia estar contra a maré. Mulher da terra da ria e dos barcos, pegava nas palavras e compunha remos e outros utensílios para ajudar na faina da vida. Agradeço a amizade e companhia que sempre lhe deu, nas quintas-feiras da praça, onde ir à sua casa era paragem obrigatória.

E agradeço o café com leite e a recordação desse cheiro e desse sabor. Nunca mais bebi outro igual, a não ser em casa da sua filha mais velha, a minha prima Dulce. Uma espécie de legado familiar e uma espécie de ritual de afeto, que me aconchega o corpo e o coração. Ainda hoje.

Neste dia da mulher, agradeço-lhe ter feito parte da minha vida e da minha família. Agradeço-lhe o riso, a alegria e o sentimento que dela guardei desde menina: as mulheres são fortes e são capazes de resolver quase tudo. Apesar de já ser adulta, persisto nesta ideia que alimenta os dias e as horas do meu tempo.
Obrigada tia Maria. E em sua memória, obrigada a todas as mulheres que fazem a vida andar em sentido ascendente. Com risos, palavras, afetos. Sem arrepiar caminho.


domingo, 1 de março de 2015

Tempo e palavras


Hoje, guardei as palavras dentro de mim e com elas o silêncio. Fiz como o poeta, agarrei-as ao poste, muitas já me fugiram, instalei-as noutros lugares. Mas hoje não as quero por aqui, a vaguear à solta, com tanta gente por perto.

Vou precisar muito delas, amanha, cheias de poesia e sons de alegria.

Não as posso desperdiçar. São preciosas para acalentar meninos e sonhos.