domingo, 30 de novembro de 2014

Infância(s) e contexto(s)

Mais um sábado pedagógico. Obrigada às oradoras, Adelaide e Esmeralda por tão bem retratarem o seu oficio e nos oferecerem relatos de práticas tão sistemáticas, transparentes e promotoras de uma escola de cultura e democracia. Rodeadas das produções e das falas das crianças, ali estiveram a (re)afirmar o seu lugar e função nos projetos que dinamizam no quotidiano da sala de aula, como estratégia para as aprendizagens significativas. Assim o defenderam, num discurso simultaneamente racional e afetivo. Ser professor assim exige organização, vigilância permanente (de princípios, objetivos, modos de fazer), estudo, escrita, reflexão. E sobretudo lealdade e coerência, consigo próprio, com as crianças e o com grupo de companheiros de jornada. Como ninguém nasce ensinado, é fundamental a cooperação entre iguais.  E entre grandes e pequenos. Esta é também a lógica dos projetos, como nos revelaram nesta manhã. 

No intervalo, percorri o colégio (Cantinho dos Amigos) que nos acolheu com simpatia, prática que já tem história. E história tem também a construção dos cenários educativos que podemos ver nas salas e nos diferentes espaços da casa. Para além da funcionalidade, é bonito o que se vê. As obras das crianças e das famílias ali estão, bem cuidadas e estrategicamente pensadas para documentar o trabalho pedagógico e o projeto educativo. Pinturas, desenhos, fotografias, exposição de brinquedos (no contexto do dia nacional do pijama e dos direitos das crianças), tudo muito bem cuidado, com cor, estética, legendas, frases, ideias. Nas salas, a organização dos instrumentos de regulação do grupo, os inventários, os espaços e áreas de trabalho, a diversidade das produções, a identidade dos grupos, as histórias vividas e registadas. E claro, os equipamentos, adequados, bonitos, cuidados.

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Uma manhã cheia, com muito sol e eu a escurecer por dentro. Cheia de alegria por renovar os meus princípios e a minha convicção, mas a estremecer com os lugares de sombra, esses que ofuscam as conquistas e nos tolhem as ousadias. Eu a pensar e a rever o que faço menos bem. Eu a rebuscar o que em mim ainda persiste da velha escola.

Eu a comparar os espaços, os contextos, as famílias. Eu a refletir sobre o currículo que consigo construir contra o(s) currículo(s) que vejo praticado(s). Eu a desejar ser muito melhor, como pessoa e profissional, para me enlaçar plenamente no meu contexto e não sonhar com os outros, os que nos devolvem a imagem que queremos ver no espelho da nossa identidade.

E assim vim para casa, entre o prazer e o cansaço de ser educadora onde sou. Com vontades de outros mundos, mais abertos e comuns, mais livres e pacíficos, mais normalizados? Assim vim para casa e depois escrevi este texto. Eu sei que há coisas que talvez não se devam escrever, não é politicamente correto fazer comparações ou cobiçar contextos alheios. Sei disso tudo, uma parte de mim, sabe disso tudo. A outra parte reclama dias lisos e janelas frescas de afeto e acalmia para as crianças crescerem com risos cristalinos e sobretudo com igualdade de oportunidades e respeito pelos seus direitos.

Aqui fica  o poema "Traduzir-se" (Ferreira Goulart) de que gosto muito e que leio, quando a alma anda entre cá e lá. Como hoje.

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir-se uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Telegrama

Procuro-te nos vales da minha memória e apareces sorridente, em forma de retrato esbatido pelo tempo. Aos poucos o teu rosto define-se, olhos, boca, cabelo, para subitamente desaparecer contra o vidro da janela.

http://4.bp.blogspot.com/_S6NiUDwOpQU/SjK7m9vE84I/AAAAAAAACYo/6WYHNp6bEN0/s320/ruazinha+desconhecida.jpgPercorro com as mãos o vidro embaciado, desenho uma espécie de rede para reter as raízes que trazes presas ao teu nome. Chamo por ele e o eco repete-o sem fim, o coração é um túnel onde as palavras germinam, agarradas às veias onde veloz corre o sangue da vida.

De resto, nada mais sei, a não ser deste dia de chuva mansa, capaz de iluminar saudades  em forma de palavras escritas. Lanço-as por aqui, um pouco à toa, para que não consumam inutilmente os lugares de descanso dos nossos sonhos.

sábado, 22 de novembro de 2014

Envolvimento e participação

Com algum cuidado, lá acertámos os dias para virem à escola para em conjunto com os filhos, participarem na iniciativa do dia nacional do pijama. O convite foi informal, em conversas matinais, ao pé da porta, cara a cara, num tom quase aligeirado, que por aqui, os pedidos convencionais com palavras escritas morrem na praia e produzem pouco efeito. E lá vieram, durante três dias, mães, pais, irmãs, umas acompanhadas com outras, que isto de ir sozinho à escola, fazer não se sabe bem o quê, não é fácil nem tranquilizador. E de tantas mãos empenhadas, a princípio a medo, depois com risos e conversas (mais) soltas, nasceram belos corações de cartão, decorados com panos coloridos, bocados de tule e renda, papéis brilhantes, e tantas outras coisas que foram encontrando dentro das caixas colocadas no meio das mesas. Tal como as crianças, misturaram cores, cola, recortaram, colaram, pediram apoio, negociaram com os filhos, aprumaram-se na tarefa e fizeram as suas obras. Lindas.

Também houve encomendas para quem não pode ou não quis comparecer à chamada. Distribuiu-se o material, que nem sempre existe em casa o que abunda na escola.  Se assim é, resta-nos encontrar outras estratégias e contrariar o que pode ser impedimento. Assim fizemos e ficámos expectantes sobre os resultados, depois de um ano em que as aproximações entre escola e família, foram tímidas, conflituosas, ausentes, ainda que em crescendo, desde o início do ano até ao seu final. Por isso, quando as encomendas chegaram e nos eram confiadas com gestos reservados e olhos a inquirir sobre o seu valor e perfeição, maravilhámo-nos e agradecemos. E documentámos o trabalho, devolvendo o seu interesse para uma causa comum e para cada um dos participantes. Agora temos a sala com muitos corações e retratos de famílias, que as crianças, todas as crianças, têm direito a uma família.

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Se conto tudo isto e sobre isto escrevo, não é por ser coisa rara nos contextos da educação de infância. Todos conhecemos o trabalho desenvolvido pelos educadores no domínio da relação com as famílias e as diferentes estratégias .para dinamizar a sua participação no currículo. Quando comparado com outras experiências, o que se viveu na nossa sala é uma pequena gota, mas a gota certa para nos saciar a sede e a esperança nos beneficios de uma educação partilhada. Porque por aqui, ainda nos encontramos no limar das arestas, no início da caminhada, da criação de um lastro de bem viver, de acertos de linguagens e pontos de vista, da desconstrução de uma representação da escola como território exterior, pertença dos professores, e onde a participação ganha contornos de entradas abruptas para guerras, desconfianças e exigências.

Porque por aqui, as culturas em presença cresceram afastadas dos direitos de cidadania e as histórias de vida guardam memórias de escola onde o insucesso e a estranheza foram a nota dominante. Sabemos todos como a participação exige um autoconceito positivo, o reconhecimento do projeto educativo como coisa partilhada, sendo comum que quem mais participa é quem se revê e entende a cultura de que a escola é portadora. E a escola produz linguagens e projetos que muitas vezes são estranhas ao universo cultural das familias em presença.  Contrariar esta realidade é duro, difícil e exige uma extraordinária resiliência e sentido de futuro. Porque as mudanças são tão lentas que quase se desiste no limiar do cansaço.

Sei que não exagero e sei por isso que o que vivemos foi bonito e novo. Aqueceu-me o sonho e ajudou  a confirmar que se a educação não pode tudo, alguma coisa a educação pode (Paulo Freire).  Pois é, pode inundar a sala de corações coloridos, num gesto solidário de grandes e pequenos. Pode criar espaços de afirmação de pessoas que habitualmente vivem na sombra, podem ser sementes de histórias de  outras linguagens, onde todos se incluam e onde todos se revejam.

Fácil? não, não vai ser, mas já começámos. Saiba eu e toda a equipa manter a capacidade de investir, aceitar a lenta sucessão dos dias e encontrar as estratégias certas para apoiar a(s) mudança(s). Saiba eu aguentar o desejo de outra(s) realidade(s) mais fáceis e de maior feição para o trabalho educativo. Temos que estar onde somos mais necessários.

domingo, 16 de novembro de 2014

Em teu nome

Há um silêncio tranquilo e doce que envolve o dia lá fora. Em mim, um tempo lento cobre-me de nostalgia e não sei onde permanecer, desloco-me ao ritmo da saudade que tenho. O domingo já acordou, já planeei a semana de trabalho para os meninos e meninas, estou preocupada com alguns deles, tento acertar a interiorização de novas formas de estar e fazer na sala. Demoramo-nos nesta (re)construção de sentido(s) para encontrar serenidade e diminuição de conflitos e agitação. Demoramo-nos na aprendizagem da aquietação do corpo, esse instrumento primeiro para conhecer o mundo. Demoramo-nos para entender o nosso lugar ao lado de outros. Contudo, hoje, adormeço esta procura e esta preocupação, tenho a energia em saldo negativo.
Hoje em mim, o silêncio inunda quase todas as palavras que me deixaste e percorro apenas algumas memórias e o que ficou para fazer. Ainda era muito, na tua agenda a tua letra a lápis de carvão registou algumas coisas a não esquecer. Ficaram suspensas, nesse tempo não sabias que a partida estava para breve. 

http://coppaflores.com/wp-content/uploads/Destaque7-Jarra-de-Flores-02-2wjk6htkwfqysvkz5z6mtm.jpgHoje, em mim, as tuas mãos de afago nos meus bibes de menina, compondo-me a alindando-me. A tua atrapalhação quando, mais velha, te perguntei pela vida das mulheres que geram filhos, mistério que queria ver resolvido. A tua atenção e as tuas conversas a propósito do mundo, da politica e das noticias que acompanhavas a par e passo, quando mais tarde começaste a viver na nossa casa.

Hoje, em mim, a imagem das tuas mãos de costureira, oficio com que ganhaste a vida e puseste o pão de cada dia sobre a mesa. Nunca te perguntei pelos teus sonhos para além das linhas e do dedal, mas pressenti sempre no teu coração uma eterna juventude e uma curiosidade aberta para o mundo. Interessavas-te pela vida e os teus olhos menineiros, já o escrevi, pareciam faróis a precorrer a linha do horizonte, à espera de boas novas. Mantiveste sempre a esperança de confirmar outra terra à vista, mesmo nos dias de nevoeiro.

Hoje, em mim, a saudade pela tua partida, ainda que mansa e mais conformada. Já são sete anos de ausência, os rapazes cresceram e eu envelheci. Continuamos por cá a recordar-te e a rirmo-nos com as tuas frases e a leveza de mulher forte e combatente.

Vamos almoçar todos juntos, hoje, em tua honra, assim propôs o teu neto mais novo. Gostaria que nos pudesse ouvir, felizes, com as nossas memórias, à volta da mesa.  E que soubesses que isso, apesar da saudade e da nostalgia, é um dos teus legados na nossa vida. 

domingo, 9 de novembro de 2014

Acertar-me

Acertar o passo. Um dois, um dois. Respirar. Acertar o passo, de novo, um dois, um dois, ouvir o bater do coração, acertar a cadência e a serenidade, as expectativas, os pés, com firmeza, no chão. Acertar a doçura e a alegria. 

Acertar a respiração, com calma, e acertar as palavras, as ideias. Acertar o que tem que ser acertado. Acertar noutro(s) tema(s), e nas mãos teimosas e transparentes, procuram letras do alfabeto e fazem  as palavras que agora nascem. Acertar no que me persegue, do qual não sei fugir. Acertar no dar o peito às balas, porque só sei virar-me de frente para a vida. 
Acertar nos embates e na construção de dias novos. Acertar na agonia deste teimar, torná-lo mais dócil e temperado.

Acertar os muitos livros nas estantes do sótão, voltar a reler e a pensar. Com entusiasmo. Acertar o espanto que já foi lugar de chegada e agora se mantém em lugar incerto. Acertar as leituras para serem fermento do pão na mesa, todos os dias.

http://lounge.obviousmag.org/esconderijo/2012/06/05/relogioGIRL.jpgAcertar os amigos. Convocar os seus milagres de tempo partilhado, alimentar-me dos seus conselhos, colo e poiso, nas tardes longas de outono com castanhas. Acertá-los para adormecer num sono tranquilo de quem quer amanhecer.

Acertar as minhas palavras de mãe. Descobrir as mais eficazes para apoiar o crescimento de embondeiros nos quintais dos filhos que fazem casas em terras alheias.
Semear e acertar com o crescimento e a colheita dos frutos do amor.

Acertar-me. Colocar-me no meio do relógio do tempo que roda sem parar e medir-lhe a cadência e a pulsação. Acertar o meu desejo de primaveras, antes da passagem do inverno. Acertar a paciência e a persistência. 

Acertar a pedagogia. Parar a fuga para a frente e acertar o passo. Um dois, um dois, de novo, um dois, um dois. Deixar de querer dar dez passos, medir o tamanho das pernas dos meninos e meninas, olhar o caminho andado, ver o que falta percorrer. Um dois, um dois. Apenas assim, porque é assim que pode ser. Acertar o modelo pedagógico, retirar-lhe o lugar de dianteira, acertá-lo com os modos de vida vivida na sala e em casa. Acertar os risos, as mãos que batem, os colos que buscam, as falas que oferecem. 

Acertar as expectativas, acertar o olhar sobre o local. Abeirar-me do que me rodeia e ser apenas compreensivelmente ousada. Acertar as exigências sobre mim e os outros. Acertar e acertar-me.     

domingo, 2 de novembro de 2014

Saudade

Neste fim-de-semana que agora acaba, as palavras deram lugar ao silêncio e aos campos da Murtosa, a terra que te viu nascer e partir. Durante dois dias andei por lá, às voltas com a saudade e as memórias de infância, em retratos antigos de menina de franja, fios de água e luz cintilante, pés pequenos na água fresca, amoras vermelhas a derreter na boca...azedas amarelas para trincar, flores para o jogo já namoras? Quantos namorados tens? e depois mandavam-se as flores à camisola e contavam-se as que ficavam presas...e ríamo-nos pelo numero exagerado de namorados, nós que sonhávamos por um, apenas um...

Alindei a casa,  senti  o frio da manhã, apreciei o cair da tarde, perdi o olhar nos braços da ria, procurei os flamingos que descansam nas suas águas e desejei que estivesses comigo. Connosco, na nossa casa, a fazer o comer ou a ver a televisão. Ou a perguntar pelo tempo, irá chover hoje?

http://1.bp.blogspot.com/-m4L_in5C9BE/UODRQP1Q4KI/AAAAAAAAD_0/pEuxUlOjybU/s1600/moliceiro+foto+Joaquim+Aur%C3%A9lio1.jpgTalvez vá, sim mãe, aliás já choveu. E eu sinto falta de ver o teu rosto contra o vidro da janela, à procura dos sinais do tempo. O teu rosto real  com algumas rugas, moreno, doce e quente. Com o calor da vida que tinhas no teu corpo e no teu coração de mulher e mãe.  

Assim te queria e assim te pensei, neste fim-de-semana. Doeu-me um bocadinho. Não há forma de passar esta dor fina e quase sempre presente. 

Podemos disfarçar, brincar, correr e cantar muito. Dançar e escrever. Pensar sobre as crianças e o nosso trabalho, ir ao teatro e ao cinema, conversar com as nossas amigas do peito. 
Podemos fazer tudo isso  e fazemos porque a vida assim se faz. Mas nunca se desfaz a saudade que nos acompanha de mansinho quase todos os dias.