sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Retomar o lugar

Terminou mais uma semana. Difícil. Sinto-me cansada. Procuro espaços e situações que me devolvam uma luz suave de primavera e o cair de tardes maduras, com o céu laranja a anunciar tempo quente no dia seguinte. Faz-me falta mudar de registo da cor cinzenta e dos dias carregados de chuva, mas sei que não é do inverno que estou cansada. Eu até gosto da água a correr nos telhados e de uma manta de lã no sofá, para aquecer as noites frias de janeiro.

Mas estou cansada, com as reservas quase no fim, a sentir-me finita, sem alma. Sim eu sei, esta é a vida, a real, existe, cerca-me por todos os lados e impõe-se. Não há como recusá-la em cada manhã, está ali, flutua e expressa-se nos movimentos imbricados de pais e filhos e tios e irmãos, apronta-se afiada nas ações das crianças que irrompem pela sala e desfiam alguns rosários, apesar de um corpo pequeno, que treme com frio e fome. De pão e de beijos. O leite e a bolacha parecem sossegar alguma inquietação, mas as contas dos rosários são longas e persistem noutras formas. Birras grandes, voltaram em força, querem colos e mimos. Muitos.  E é difícil dosear, o que sabemos nós das dores de quem é pequeno e quer respostas para as perguntas que espreitam no coração e se transformam em livros no chão, brigas recorrentes com os amigos, amuos prolongados, manipulações certeiras aos nossos afetos?

Estou cansada de tanto me chamarem. Os meninos, claro. Gastam-me o nome e a energia. E estou cansada de tanto me esquecerem. Os grandes, claro. Gastam-me o entusiasmo. E estou cansada de um discurso sobre dificuldades. Sempre as dificuldades, nunca os sucessos. De tanto se dizer, assim se fica. Está escrito e nós sabemos. Por saber, não podemos ignorar. Não ignoramos e cansamos-nos. 

Eu sei, é fim de semana, tenho o peso dos dias dentro de mim. E o sentimento de "paragem", como se a viagem iniciada há meses conhecesse agora um apeadeiro, a forçar uma saída e um tempo de espera. E nós com pressa de seguir em frente, encontrar de novo o caminho, sentarmos-nos confortáveis e com espaço para todos, integrando os que menos facilidade têm em se acomodar sem protestos  e rebeldia brusca de procura do seu poiso. E há poisos que teimam em tardar. E eu finita.  

Por isso, nesta sexta-feira, procuro outras coisas que me digam que a vida também existe para além deste meu cansaço. Que dêem paz e sossego ao meu coração cheio de vozes e ecos e indiferença e penas. Procuro luz, cores e matizes, palavras e imagens, horizontes e dança. Musica e poesia. Preciso de encher o meu reportório de encantamento e a minha mochila de entusiasmo. Vou precisar disso para a próxima semana. Sem falta.

E para iniciar este fim de semana, aqui fica pela voz de Sophia de Mello Breyner 

No mundo da arte há muitos saltibancos
Que vivem sem rede e jogam
A virar o mundo de pernas para o ar

Também caminham 
Pé ante pé no arame
equilibrados no fio fino e leve da vara

Eles próprios são leves e finos e recaem
Aéreos sobre a terra e conhecem
As leis abstractas do equilíbrio

O jogo do que é os absorve
Porque o inventam

Sophia de Mello Breyner "à la manière"in O Búzio de Cós, 1997 
    

sábado, 25 de janeiro de 2014

25 de janeiro


Para o meu filho João

Quero escrever devagar, sentir cada palavra no fundo da barriga, enchê-la do mesmo peso e da mesma emoção que tinha há 28 anos, na véspera do dia em que nasceste. Esperava-te por esses dias, acreditando nas palavras do médico "vai ser este fim de semana. E vai ser fácil". E foi. No sábado, dia 25 de janeiro, apresentaste ao mundo, com choro e fome e um calor surpreendente, morno e misterioso para uma jovem mãe, expectante e cheia de amor.

Quero escrever devagar e percorrer cada memória desse dia, lentamente, eternamente, porque esta condição de mãe e filho é para toda a vida, desde o inicio e até ao fim. O amanhecer do dia, o banho rápido, a entrada no hospital, os olhos azuis da enfermeira, uma dor e...tu a chorar. Dispensaste os médicos, foste rápido, numa intenção de quase não incomodar.

Quero escrever devagar, para não perder os cheiros e a intimidade desse dia. Tudo colado a nós, o mundo lá fora a girar, tinha estado no pavilhão dos desportos na véspera, não me deixaste ir votar para as eleições presenciais. Mas a vitória era nossa, abraçados que tínhamos andado, tu na água quente da minha barriga, eu com o bater do teu coração em mim. Tudo tão intimo, tão poderosamente vivo, a sair de mim, num mistério indizível.

Quero escrever devagar para não espantar o som da tua boca a beber o leite que o meu corpo preparou para ti, os teus dedos esquecidos em cima do meu peito, os olhos a fecharem-se de mansinho, a respiração a retomar uma cadência serena. E eu a mirar-te, a tentar conhecer a geografia do teu corpo, a percorrer as linhas esculpidas nas mãos, nos pés, no teu rosto pequenino.  Eu a olhar-te mais fundo, a perguntar das outras linhas,  as escondidas, bordadas no teu coração, aquelas tecidas durante nove meses, pertença dos dois e invisíveis aos olhos de outros.

Quero escrever devagar para te ver hoje como és. Homem bonito e confiável, corpo magro e esguio, projeto de vida a correr mundo. Quero oferecer-te uns ténis macios e confortáveis para que te apresentes seguro em todas as provas que desejes vencer, passada atrás de passada, por todos os caminhos do trajeto escolhido.

Quero desejar-te o melhor do presente, para venceres o futuro. Dominares os teus demónios, brigares pelos teus sonhos, persistires nos desafios, sem nunca desistires.

Quero enfim continuar por cá. E em todos os dias 25 de janeiro que ainda hão-de vir, relembrar o calor do teu sorriso e o som do teu choro, como as primeiras emoções de uma vida que vale a pena viver.

Amo-te meu filho. Parabéns!          

domingo, 19 de janeiro de 2014

Alerta

Uma amiga telefonou e estivemos a partilhar bocados de vida.

No caso, da vida profissional, mas sabemos que quando é assim, partilhamos também a vida pessoal. Fez-me bem. Entre apoio e reconhecimento, confronto e discordância, as palavras ditas vieram confirmar que a amizade, ainda que não seja celebrada todos os dias, é uma janela aberta ao mundo que nos faz ver o horizonte e toda a extensão da paisagem. Reparamos, por força de quem nos diz, que a vida é mais do que a nossa realidade e que os sentimentos experimentados, ainda que nos pertençam, são partilhados e vividos por outros, em muitos lugares e espaços. Relativizamos assim a trama do nosso quotidiano e abrimos alas para deixar entrar uma espécie de confiança e serenidade. Tanto quanto, bem entendido, que a matriz de que somos feitos é trave mestra da arquitetura de sermos gente. Fundados nela, seria ingenuidade e talvez desastre querer mudar a argamassa de que somos feitos. 

Neste domingo que termina, oiço o vento lá fora e estou cheia de palavras. Ecoam no meu pensamento, libertam-me as amarras da inquietação, constroem um espaço de conforto. Ainda que não tenha podido ou sabido acolher todas as ideias que me foram ditas, fez-me bem sentir que não estou só.

E isso é tesouro a guardar para o dia de amanha. Na minha mochila que trago comigo e que sempre me acompanha. Vou levá-la, como sempre, para a minha sala e as minhas crianças. Desta vez com uma maior dose de recados. 

Vai ser bom ser segunda-feira!


sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Pela noite dentro

Noite sem sono. 
Já todos dormem. Persisto na insónia, a mente ocupada, apesar de ser sexta-feira. Cai a chuva com força no telhado, está um frio forte de madrugada, um gelo que me cerca o corpo, apesar da manta nos joelhos. É uma manta tua, que usavas no inverno, a protestar das dores que sentias. Se estivesses cá, estarias a dormir no teu quarto, que agora está vazio da tua presença, mas ainda com vestígios e objetos que te pertenceram. São bonitos e são eternos. Como tu. 

Vou lá muitas vezes, é um quarto vivo, que foi teu e continua a ser ocupado, muitas vezes por amigos dos teus netos que dormem lá, em noites de saídas, quando já não dá para irem para casa. Gosto disso, assim damos-lhe serventia, transformando a tua ausência noutras vidas e acontecimentos. Como certeza desta corrente que não pára e nos liga a todos. Os que cá estão e os que já partiram. Como tu. 

A seguir seremos nós. E depois os mais novos, que entretanto irão envelhecer com o decorrer dos dias, meses e anos. Foi isso que pensei quando hoje entrei no quarto e vi alguns objetos que estão lá, porque foram teus e ficaram entre nós. Fiquei com saudade e com certezas. Que a vida é esta condição de chegada e de partida, ficando no meio tudo o que somos e construímos. Muito e pouco, tudo e nada.
   
Talvez pela chuva e pelo tempo que faz, esta ideia instalou-se em mim e entristeceu-me. Andei às voltas entre o jantar, algumas conversas e o olhar distraído para a televisão. A pensar que somos finitos. 

Em alguns dias e sobretudo noites, é motivo para insónia. 


domingo, 12 de janeiro de 2014

A dimensão do tempo

Ainda só passaram 12 dias do ano de 2014 e parece que estou nele há já muito tempo. É sempre curioso experimentar este sentimento, uma espécie de amnésia sobre o passado recente, como se os últimos dias vividos fossem assim desde sempre, a escola, as crianças, as reuniões, as atas, os planos e os imprevistos. Como uma roda livre, anda que anda, pára que pára, mas sempre em contínuo movimento rumo ao futuro, no presente que conseguimos construir. E o presente é tempo que se esvai no meio de nós, é nosso e parece não ser, paradoxalmente tão definido e tão fugidio. 

Se ouvimos as 12 badaladas ainda há pouco tempo, comemorámos a entrada do novo ano, comemos passas e festejámos, preguiçámos de tempo livre e deambulámos pela liberdade de nada fazer, como é que agora, passado tão pouco tempo, estamos já absolutamente carregados de vida e cheios de tudo o que fizemos nestes escassos dias? A semana que passou mostra-se aos nosso olhos, registamos as suas epifanias e acontecimentos, as ideias dos meninos e meninas, as suas produções, brincadeiras, descobertas, abraços e alegrias, saudades e medos...e não, não é uma semana, não pode ser, impossível conter em cinco dias todos os enredos vividos, as histórias, o pega e larga, o quero e não quero, o ter e o ser de cada um de nós, naquele lugar. A escola e a sala.

E naquele lugar o tempo tem outra ressonância. Está cheio, cheiinho de vidas e palavras e ações e ideias e sentimentos, numa rapidez ou lentidão própria da multiplicidade de vidas, em interação. E porque somos muitos, tudo se acumula e expande, o tempo fraccionado em mil pulsações, que é como quem diz, um tempo ao ritmo de cada um. Vinte cinco tempos, em emoção e projeto, numa cadência de tempo, definida e acertada em calendário. Dia e noite, semanas e meses, estações do ano. Este tempo não é o tempo de vida das crianças. As crianças aumentam, reduzem, desperdiçam, aproveitam, reclamam o tempo de forma pessoal e única, quase intransmissível.  Se tal lhes for possibilitado e para isso tiverem oportunidade. Tempo para criar tempo, como nos diz João dos Santos  

Assim estou neste domingo de chuva, plena da semana que terminou, a tentar acertar os ritmos e os significados do tempo e da agenda por planificar. Assim estou, tentando não esquecer que o tempo é uma variável não palpável, apreendida e usada pela vivência de cada menino e menina na sua relação com os outros, os objetos e os acontecimentos. Processo lento e multifacetado. Vale a pena apressá-lo?

“Não sei o que é o tempo. Não sei qual a verdadeira medida que ele tem, se tem alguma. A do relógio sei que é falsa: divide o tempo espacialmente, por fora.

Fernando Pessoa, 2006, Livro do desassossego


domingo, 5 de janeiro de 2014

Propósito(s)

Domingo. O sol espreita nesta manhã, tímido, parece ter medo da chuva e do vento que há muitos dias permanecem entre nós. Mas atreveu-se dar o ar da sua graça, o sol. Ainda bem, assim o dia é mais risonho e acolhedor. 

Estamos no ultimo dia do tempo de carregar energias, descansar o corpo, libertar o pensamento. Assim fizemos, ainda que neste ultimo aspeto não tenha sido tão fácil. O pensamento é livre, astuto, poderoso e mal mandado. Raramente obedece às nossas ordens, pelo menos no meu caso. Tem vontade própria e é rebelde. Não o conseguimos domar. 

Mas este tempo, entre o natal e o ano novo, terminei avaliações, conclui o plano de grupo, defini estratégias e recursos, reafirmei os princípios que desejo continuar a fazer vingar no quotidiano pedagógico. E se possível , melhorar, que o caminho vivido não foi fácil nem isento de dificuldades e erros.
Necessito de ser mais confiante e resistente, menos permeável  à corrente do clima escolar, tão dado a prostrações e défices. 

Compreendo, sei das circunstâncias que nos rodeiam, mas não me posso deixar ir na leva, como se diz na minha terra. Preciso de ficar vigilante e explorar as minhas reservas de crença e otimismo no papel da educação e dos professores, enquanto atores de mudança. Sem vacilar. 

Neste ano de 2014, é isso que desejo e aquilo a que me proponho. Ser uma educadora capaz de fazer a diferença, mostrar-me atenta e sensível para escutar as crianças e os seus mundos, pessoais, familiares e sociais. Tarefa imensa, que não prevê desistências ou preconceitos, cada menino e menina e família, tem direito a uma resposta educativa de qualidade, que integre as suas necessidades e contextos de vida. Como são, sem que disso possamos criar estereótipos e leituras apressadas. Olhemos com olhos de ver. 

Vou precisar de outros ao meu lado, esta missão é esgotante e apesar de todos os propósitos, o dia a dia exige uma equipa. Coesa e acolhedora. Darei o meu melhor para a construir.

Assim estou neste inicio de janeiro.  Com um sol tímido e uma vontade férrea. Já não falta tudo.